Era mais uma noite de sexta-feira no mesmo bar de karaoke onde descobri há cerca de um ano que brilhar no karaoke é mais pela atitude do que pela afinação. E sendo minimamente afinado e alcançando uma inesperada autoconfiança que estilhaçava a minha timidez aos primeiros acordes polifónicos da música, dei por mim a fazer sucesso junto do sexo oposto como nunca alguma vez pensei ter. Nas outras noites sou eu mesmo, mas às sextas-feiras sou este alter-ego misto de rei do palco e mestre do engate.
Mas naquela noite o seduzido fui eu. A princípio ainda revirei os olhos a pensar, mais uma a cantar o "Chamar A Música". Mas assim que a ouvi a voz dela, dizendo que esta noite ela iria ficar prisioneira desse olhar, fiquei hipnotizado. No palco, ela chilreava num simples mas sensual vestido branco. Aproximei-me dela e quando ela olhou para mim, bebi o licor como filtro redentor de amor e o chá feito de aromas que não há. E quando ela terminou a olhar para mim, a noite já era de açucenas. Tudo o queria era abraçar-lhe apenas e chamar a música.
Fui ter com ela, ofereci-lhe uma bebida, a conversa foi fluindo. Era de Barcelos, estava cá há dois meses e ainda não conhecia este bar. Sim, por vezes ia lá aos karaokes de Barcelos e arredores, gosta muito de cantar embora nunca tivesse pretensões de ser uma estrela. Pelo menos, além do karaoke.
Nessa noite, eu pretendia recorrer a uma das minhas canções para brilhar, o "Last Kiss" dos Pearl Jam, raspando a minha voz um pouco para ficar parecida com o Eddie Vedder e pôr toda a gente a entoar o "whoooooa" no final. Mas com ela aqui, decidi mudar de canção e troquei o sal do Eddie Vedder pelo gengibre de Ed Sheeran em "Give Me Love". O meu sangue não estava transformado em álcool (até porque raramente bebo mais que a conta) mas cantei-lhe para que ela me desse amor e que tudo o que queria era o sabor que os seus lábios permitissem. Claro que mesmo cantando para ela, não esqueci o resto da audiência e puxei por eles para os "my, my, my" da recta final da canção. Quando desci, já sabia que também ela estava conquistada pela minha magia karokeana e depois só havia uma coisa a fazer. Escaparmo-nos para um sítio mais privado, darmos largas à súbita atracção germinada em cantigas e fazer amor. Com as nossas vozes.
Foi o que fizemos no resto daquela noite de sexta-feira e nas três noites seguintes, numa das salas privadas do bar onde de microfone em punho, unimos as vozes em orgásmicos duetos. Ela foi Sara Tavares, Sofia Lisboa, Rita Guerra, Kylie Minogue, Tami Tarrell e Bonnie Tyler e eu os seus respectivos Nuno Guerreiro, David Fonseca, Beto, Jason Donovan, Marvin Gaye e Rory Dodd. Até que chegou a noite em que em vez das vozes, os nossos corpos tocaram os acordes na mais perfeita sinfonia amorosa.
Porém quando a manhã de sábado chegou eu já não era aquele alter-ego carismático e conquistador, apenas o meu verdadeiro eu. E com medo de que ela não gostasse do meu eu despido de coragem e magnetismo vocal, dei corda aos sapatos da minha cobardia e fui-me embora enquanto ela ainda dormia sem lhe dizer adeus.
Só regressei aquele bar de karaoke dois meses mais tarde. Certifiquei-me que era o primeiro entrar logo à hora de abertura, aluguei uma sala privada e entreguei-me a uma parada de canções tristes. Mas as lágrimas só caíram quando terminei a minha via sacra vocal com o "Chamar a Música". Por fim, paguei a hora passada na reclusão e saí ainda com os olhos vermelhos de choro. Mas ainda não tinha dado dois passos, dei de caras com ela. Era o golpe final, ver-me tão desfeito, tão diferente daquele cantor com quem vivera a mais bela das harmonias. Ficámos imóveis a olhar um para o outro, até que ela chegou-se ao pé de mim e cantou-me quase num sussurro:
"My, my, my, my, oh give me love..."