segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Grão-Ducado

Era apenas um sonho em forma de anúncio num jornal. Um tiro no escuro. Quase como jogar no EuroMilhões. A esperança não era muita, mas só não jogando é que não sai mesmo o jackpot. Se é verdade que a desgraça toca por volta e meia a qualquer um, as horas felizes também surgem assim. Mas logo a mim?
Quando vi aquele e-mail na biblioteca, levei as mãos ao ar e nem sei como gritei logo ali. Afinal os sonhos acontecem, e alguns deles levam-nos bem longe. No meu caso, a um pequenino grão-ducado entalado algures na Europa. Esse seria o lugar a que chamaria casa durante três meses. Para um estágio onde eu faria aquilo que sonhava fazer na vida: traduzir. E logo para o Parlamento Europeu.
Assim que o avião descolou de Lisboa, sabia que um admirável mundo novo estava agora à minha frente. E apercebia-me de quanto o meu país está ali encurralado num canto da Europa, quase dentro de uma redoma. Indo para fora, é mais fácil sentir-se um cidadão do Mundo, sobretudo da Europa, e que há toda uma tapeçaria de sons e imagens estendida pelo Velho Continente, onde as estradas são como os fios urdidos. Parece que Portugal é apenas o arremate.
No entanto, em certos aspectos, era como Portugal tivesse ido comigo, ou não estivesse eu num país com tantos imigrantes que eram meus compatriotas. Aliás, na casa em que fiquei, no meio de uma família portuguesa, só me dava conta que estava fora do meu país quando olhava pela janela e via aquelas casas típicas de outras latitudes que só tinha visto em fotos.
Porém ao deixar o lar longe do meu lar e sair para a rua, sentia-me como a Dorothy quando descobriu que já não estava no Kansas. Mesmo quando essas ruas, pontes e avenidas se iam tornando familiares aos meus olhos. Não ao fim do arco-íris, mas ao fim do percurso do autocarro, lá estavam as Torres Gémeas, quais Torres de Babel, onde tantas línguas confluem como rios, esperando que no curso se chegue a um mar de entendimento, a bem do Velho Continente.
No 12.º andar da Torre A, surgiam-me no computador actas e ordens do dia destinadas às diversas comissões de deputados do Parlamento Europeu em francês e inglês para eu traduzir para a minha língua. Das quotas de captura do carapau branco à situação os direitos do Homem na Guiné, nenhum assunto escapa ao debate dos deputados em Bruxelas e em Estrasburgo nem à descodificação dos tradutores nas Torres erguidas no bairro luxemburguês de Kirchberg.
Mas se já a oportunidade de viver noutro país e trabalhar em tradução seria já uma valiosa experiência para a minha vida, foram os amigos que fiz lá que a tornaram verdadeiramente preciosa. Primeiro, o encontro dos estagiários, as apresentações feitas em várias direcções, as curiosidades sobre as origens e as línguas de cada um. Depois, os forwards no e-mail trocando piadas, reflexões e convites, as conversas temperadas com a comida da cantina à hora do almoço ou sob um café au lait nas pausas matinais, as festas regadas com um quanto baste de álcool, as viagens que por entre tropelias e azeites me fizeram descobrir mais lugares que até então só em sonhos tinha ido. Por fim, sentir na alma que havia tanta gente vinda de tantos sítios diferentes do meu que me acarinhou, que me inspirou, que soube olhar para além da minha superfície e ver o meu verdadeiro eu.
Tive muita pena que o meu sonho não pudesse durar mais do que três meses, que passaram num instante diante dos meus olhos e deixaram tanto por dizer a tanta gente. Porém, ao menos vivi o sonho intensamente enquanto durou; se era para ficar triste, que o ficasse depois, quando acabasse.
Quando numa madrugada de Dezembro, deixei a neve (que caíra na véspera como que num gesto de despedida do Luxemburgo para mim) e aterrei sob o tímido mas límpido Sol de Inverno português, trazia comigo um mundo mais alargado e tantas memórias do grão-ducado que para sempre viverão comigo, que ainda hoje permanecem tão vivas. Bem como a ânsia de saber aonde outros sonhos me levarão...