quarta-feira, 22 de abril de 2015

A Longa Noite

Finalmente de novo o prazer a teu lado. Os beijos trocados na penumbra. A dureza do teu corpo junto ao meu. Os gemidos como uma fileira de estrelas abrindo a escuridão até ao anúncio de um novo dia. E o amor a riscar o silêncio da noite e surgir belo como a manhã.
Longa foi a noite em que fui refém do ódio que me conduziu a um penoso acordar. Mas agora sei que mesmo carregando as marcas do ódio, o meu amor conseguiu ser mais forte. 

Depois de tanto medo e auto-dilaceração por me ver fora da normatividade, de temer a exclusão, o ostracismo  e a hostilidade por amar e desejar aqueles do meu género, para no meu espanto encontrar uma aceitação muito além do que eu esperava, caí no erro de pensar que o país e o mundo avançavam a um ritmo mais rápido do que realmente avançavam. Daqueles de quem eu temia que me voltassem as costas, não encontrei senão apoio e conforto. De anónimos a quem receava insultos e provocações, não desvendei senão cochichos em surdina e piadas às quais era fácil fazer ouvido mouco. Depois a legislação no nosso país deu um enorme passo em frente ao reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo e por fim a cereja no topo do bolo, encontrar-te a ti o amor que há muito sonhava, um fogo sólido e intenso nascido não da chama mas das brasas. 

Eram tantos ventos a soprar a meu favor que cometi o erro de pensar que não mais ficaria à deriva e esqueci-me que o mal, o ódio e a violência espreitam em cada esquina e podem atacar ao mínimo baixar de guarda. Foi assim que eu caí na armadilha do ódio, depois de ter-me despedido de ti com um terno beijo à porta da tua coisa. Uns quarteirões depois, uma mão que me agarra com força, um punho cerrado arremessado à minha cara, o meu corpo prostrado sem apelo no chão, quatro pares de pés a pontapearem-me estendido com a violência de mil explosões e a dor de mil punhais. Não me lembro se eles me falarem, se me vergastaram com más palavras ou se deixaram a brutalidade dos seus actos falar mais alto do que qualquer insulto. 

Quando dei por mim, estava numa cama de hospital, negro e inchado para além da razão, demasiado devastado e fraco para sequer chorar. Choraste tu e a minha família por mim ao me verem naquele estado. Mas o vosso amor resgatou-me das profundezas e fez-me encarar de novo a luz. Tinha sobrevivido, e mesmo olhando nos olhos do ódio, o amor continuava forte, dorido mas não golpeado. Por isso, não temi a penosa e demorada recuperação porque seria uma questão de tempo até voltar a reconstruir-me e erguer-me mais forte que nunca. 

Quando detiveram um dos meus agressores, fiquei espantado por descobrir, à luz do dia, como ele era ainda um rapaz tão jovem e vulnerável. O seu rosto mal conseguia encarar-me diante da sua vergonha pelas marcas ainda visíveis que ele e os seus, digamos, amigos me infligiram. Tudo o que conseguiu dizer foi me pedir timidamente o perdão, certo de que seria um pedido vão. Mas para sua surpresa e até minha, não ergui a minha voz de indignação ou raiva. Calmamente, pedi que ele olhasse para mim e visse que aquele que ele atacou naquela noite não era um bicho ruim a abater ou um espectro incorpóreo e esquisito, mas sim um simples ser humano, afinal tão semelhante a ele. "Apesar de tudo, mesmo sendo difícil, eu poderei perdoar-te. Conseguirás perdoar-te a ti mesmo?" O olhar de espanto que ele me devolveu fez-me crer que ele era alguém a quem pouco lhe mostraram de compaixão. 

Foi aí que a minha longa noite terminou e perdido nos teus braços assisti ao raiar de uma nova aurora. Mas agora não me deixo iludir pelo brilho destes novos raios luminosos porque sei o que pode me esperar nos mais escuros recantos. Ainda que eu guarde em mim a luz própria para vencer a penumbra.