sábado, 27 de outubro de 2012

Código Civil

A luz de um novo dia resgata-me do sono. Na pequenez do meu quarto da residência universitária, estamos os dois nus sob os lençóis. A cama é tão estreita que mal cabemos os dois. Virado para a parede, sinto as costas dela nas minhas e só esse contacto é suficiente para recordar as memórias da última noite.
É a primeira vez que acordo com uma rapariga na minha cama. Há uma eternidade atrás, Imaculada tinha partido antes de eu encontrar.

Eu só sabia algumas coisas dele. Que se chamava Manuel, que tinha entrado para o curso de Direito no mesmo ano que ele e que tinha nascido em São Tomé mas que veio com os pais para Portugal quando tinha menos de um ano.

E agora Beatriz, pele de puro marfim grudada ao meu ébano. Mas na noite passada, eu não fui preto, ela não foi branca. Fui apenas homem povoado por mulher.

Sabia que ele tinha um forte sotaque são-tomense mas vim a saber que a sua vontade de exprimir era bem mais forte. Por isso, mesmo que rendilhada de arestas africanas, ele sabe bem usar a língua portuguesa e as palavras percorrem a distância. E ele gosta de argumentar e contra-argumentar.

Nem Beatriz nem Imaculada faziam parte dos meus planos. Mas fui aprendendo que quando uma mulher deseja um homem, ela trilha um caminho guiando-o até ao refúgio dos seus ardores.

Agora sei que ele foi avançando no caminho que quis traçar para a sua vida. Buscar nas palavras, nos livros, nas leis, a ponte para outro futuro, longe da dureza em que foi obrigado a crescer.

Imaculada era tão moça quanto eu, quando ela pegou em mim e tirou-me os três. Nessa altura, já era fogo em vez de sangue nas veias.

Mergulhava nos livros com os olhos no futuro e não deixou que nada o distraísse. O apelo das ruas, as intimidações, os insultos, os cantos pessimistas. Para exercitar igualmente o físico, praticou andebol e foi essa a única indulgência a que se permitiu.

Ainda andei um pouco desnorteado, o feitiço de Imaculada ainda demorou a sair-me do sistema. Foi então que percebi que, embora ninguém esteja acima da lei, existem pessoas para além do bem e do mal.

Com notas excelentes e uma bolsa de estudo por mérito, realizou o sonho de entrar em Direito e forjar um futuro no dom da palavra e no rigor das leis.

A dolorosa vertigem que ela deixou deu lugar uma terna memória e eu segui em frente. E agora sei que por vezes é preciso perder a cabeça para preservar a sanidade.

Sabia tão pouco dele e agora sei mais. Sei como cheira a sua pele, como sabe a sua boca, como soam os seus murmúrios. E pensar que tudo começou quando eu tropecei no corredor da Faculdade, deixando cair uma pilha de livros. Manuel apressou-se a ajudar-me, pegando no meu exemplar do Código Civil.

Eis-me agora convidando outra mulher a surpreender os meus desejos. Desta vez ela acordou comigo. E dou por mim a pensar que se com Imaculada foi loucura, com Beatriz poderá ser algo bem lúcido. Mas por agora, sabe bem adiar a lucidez e sentir as suas costas nas minhas.   

    

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Vamos com calma

Caro José Américo Pereira Salvador:

Os teus esforços por fim deram frutos. Já não és um homem-mistério nem uma inicial obscura. És o Salvador, o meu namorado.
A prova final foi teres sido apresentado à família Lima. Eu já sabia que irias passar a prova com distinção, mas não deixa de ser um marco importante. Para o meu pai bastou chamares-te José como ele e trabalhares na auditoria onde trabalham ou trabalharam vários amigos dele. Para o Nelson bastou tu compreenderes as piadas e as conversas dele. Para o Filipe, bastou tu seres "muito giro". Para todos, sobretudo o Ricardo, bastou ver como eu estava tão bem a teu lado. Só ficaram espantados quando te descobriram que te chamas José Américo (uma homenagem ao teu avô paterno, que morreu três meses antes de nasceres), pois pensavam que Salvador era o primeiro nome e não o apelido, pelo qual insististe desde muito novo que todos teus amigos te tratassem. (Porque, de facto, quem é que com menos de trinta anos se chama José Américo?)
Já há muito que não eras apenas alguém para enganar a solidão, que me inspirava somente desejos carnais. Agora és o homem que me assalta os sonhos e me faz sonhar acordada. Agora não coloco rédeas ao coração e digo que te amo. Conquistaste-me. Missão cumprida. E agora? Vamos com calma.

Como sabes, só me apaixonei e amei a sério uma vez antes. No calor da descoberta do amor, entreguei-me sem reservas, voei a três metros acima do céu e rasando o solo, pensando que voava de mãos dadas. Claro que ele também se entregou, talvez a mim mais do que ninguém. Disse-me que eu abri portas que ele julgava que estariam sempre fechadas e que ter-se apaixonado por mim foi das melhores coisas que lhe aconteceram na vida. Só que o problema era mesmo esse: eu amava-o e ele estava só apaixonado por mim. E quando o fulgor da paixão amainou e era preciso voltar a ter os pés no chão, o meu amor, por si só, não foi suficiente para dar os passos em frente. Claro que continuei a tentar e por isso, amei-o ainda mais e ele, ainda apaixonado, não dizia que não. Mas a verdade é que o meu amor não era suficiente para o fazer mudar e caminhar comigo. Ele continuou a preferir o conforto da imobilidade emocional a que sempre estivera habituado e por isso, não íamos a lado nenhum, nem num sentido certo nem  por uma direcção errada. Por fim, percebi que para seguir em frente, tinha que continuar sozinha.
Sofri bastante mas não me arrependo de nada. Mesmo breve, foi uma paixão que foi boa de viver e de sentir, e no fundo é isso que importa. Com o tempo, acabei por ver todo essa fase como uma lição de vida e ajudou-me, por exemplo e como te disse uma vez, a ser mais arrumada de cabeça e de coração, o que se revelou bastante útil quando embarquei nesta minha profissão.

E eis que contigo, vi-me na posição inversa. Não foi difícil apaixonar-me por ti e descobri nos teus braços, com renovado prazer, um novo tipo de paixão: serena mas intensa, divertida mas constante, despretensiosa mas viciante. Mas fui percebendo que por subterfúgios subtis que me amavas: nunca dizias nada por palavras, mas dizias tanto quando me recebias junto de ti. E isso assustava-me, pois não tinha certeza se eu poderia corresponder-te como tu merecias. Teria ficado igual àquele que amei antes de ti e era agora eu que não queria mover-me em nenhum sentido? E assustava-me sobretudo saber que eu já tinha estado no teu lugar e como isso poderia ser tão doloroso, e odiava-me por ter de fazer alguém passar por isso. Claro que nunca te queixavas, mas eu sei que as minhas hesitações magoavam-te. Felizmente que a minha indecisão acabou por se resolver, sem eu sequer dar por isso. Bastou um momento de confidências com o Ricardo e o Filipe, para de repente eu ter a epifania de te referir como "aquele que amo".

Agora acabaram-se os mistérios. És aquele que está na minha vida, que me invade o coração, em quem penso nos momentos solitários. O primeiro passo está dado. Ainda tenho bastantes incertezas, não faço ideia para onde vamos, ainda estou bastante assustada em relação a basicamente tudo. Por isso, recorre de novo à tua calma incansável com que soubeste levar a água ao moinho e vamos lá, devagarinho, um dia de cada vez, como sempre fizemos até agora. Pelo menos agora, voando ou palmilhando o solo, vamos em frente.         

With my love,

Mónica
   

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Faz Tanto Tempo

Não quero saber se o teu interesse é sincero ou se é fruto de um capricho perverso.
Não quero saber se para ti sou um recurso e não uma prioridade.
Não quero saber se as mãos que agora me estendes vão ser capazes de me ferir.
Faz tanto tempo que não sinto qualquer olhar de desejo,
por mais remoto, na minha direcção,
que basta teres tido vontade de cruzar o teu olhar no meu
para eu não dizer que não.

Não quero saber se vou sofrer por ti.
Não quero saber se depois irás remeter-me à tua indiferença.
Não quero saber dos arrependimentos ou das desilusões que poderão estar para vir.
Faz tanto tempo em que não entrava num lapso de tempo e espaço
onde não tenho de me preocupar com o que vou sentir depois
e somente apenas preocupar-me em
sentir o agora.

Por isso, faz o que quiseres fazer.
Não tenho medo de me magoar, não tenho medo de sofrer.
E se tiver de ser, sofrerei depois quando for tempo de cicatrizar.
A tempestade que venha depois,
agora só quero sentir o vento que me arrasta para ti,
sentir-te, sentir alguém, 
sentir apenas.

Faz tanto tempo...