quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Coração e Tomates

Nelson:

Há tantas coisas sobre a nossa Mãe que eu sinto tanta falta. Basicamente tudo. Sinto falta de ela estar viva neste mundo e está tudo dito. Mas também sinto particularmente falta de haver outra mulher na família. Por muito que eu vos adore, a ti, ao Pai e ao Ricardo, gostava tanto daqueles momentos de cumplicidade feminina que tinha com a Mãe, de poder de falar de coisas de mulheres com ela, de revirarmos os olhos diante dos vossos desvarios como quem diz: "Ai, os homens." Não que a gente não adorasse os homens em geral, e vocês os três em particular. E crescer com dois irmãos velhos, deu-me uma privilegiada perspectiva do universo masculino, e também uma melhor compreensão do vosso sexo. Por isso, eu não alinho no famoso cliché dos homens serem todos iguais. Por muitos denominadores comuns que hajam, um olhar mais esclarecido consegue captar todo um prisma de variedades.
Tudo isto para dizer que eu adorei ter a Juliana aqui neste Natal. Isto agora de ser a única mulher numa família de homens tem que se lhe diga. Ainda para mais agora com a adição do Filipe como significant other do Ricardo, e que não deixa de ser homem, por muito que gente de dimensão muito limitada queira descategorizá-lo por ser gay. Por isso, soube bem poder reproduzir com a Ju alguma da cumplicidade feminina que eu tinha com a Mãe. Uma vez ouvi dizer que os amigos não se fazem, reconhecem-se, e não tardou a perceber que tinha uma amiga diante de mim.
Aliás, não demorou nada até ela nos conquistar a todos. Foi fácil perceber porque é que tu ficaste caidinho por ela. Por exemplo, é conhecido o teu fascínio por loiras. O Pai dizia na brincadeira que um dos principais motivos que te levou logo a querer ir para a Noruega era para lá sacar uma loira nórdica. Saiu-te porém uma loira brasileira, que sempre tem a vantagem da língua. Falas muito bem inglês e até já te desenrascas minimamente com o norueguês, mas deve ser reconfortante para ti poder falar com alguém que fala a mesma língua que tu, ainda que numa variação cantada e cheia de gerúndios. Apesar de ela viver já há vários anos na Europa, de ter uma fisionomia bem europeizada (devido aos genes alemães dos bisavós) e de não ter um feitio muito expansivo, é fácil de perceber que ela é brasileira de alma e coração.
Depois, eu sei que por muito que mulheres bonitas te fascinem, gostas mesmo é de mulheres inteligentes. Podes ter à tua frente um clone da Scarlett Johansson que se ela não tiver dois dedos de testa, perdes logo o interesse. Ficou para a história aquela tampa que tu deste uma vez a uma boazona, só porque ela disse: "O Luxemburgo fica na Alemanha, não é?".
Mas sobretudo porque tu saíste ao nosso Pai. Vocês têm ambos uma mente brilhante e um carisma cativante, mas precisam de alguém que esteja por trás que os faça brilhar. A Mãe dizia que ela se apaixonou pelo Pai porque ele era um diamante em bruto, alguém cheio de potencial e de qualidades para prosperar mas que não soubesse bem o que fazer com elas. Sem dúvida que grande parte do sucesso que o nosso Pai teve deve-se ao apoio e ao amor da sua mulher, que o ajudou a polir a gema e a limar as arestas para ser a pessoa notável que se tornou - e que continua a ser, mesmo sem a Mãe.
Contigo sucedia algo semelhante, não tanto nas tuas aptidões profissionais, pois sempre foste muito culto e inteligente, de raciocínio analítico e meticuloso e muito disciplinado naquilo que fazias. Mas em competências sociais, deixavas sempre um pouco a desejar, sobretudo no que toca o sexo oposto. Das poucas vezes que arriscavas abordar uma rapariga, o teu cérebro entrava em tal sobrecarga que saía asneira. Por isso a maioria das vezes, nem te atrevias a dar um passo, ou por medo de errar (demoraste algum tempo a aprender a lidar com os teus fracassos) ou porque mergulhavas num autismo que te impedia de captar a sinalização luminosa que passava diante dos teus olhos. Houve algumas amigas minhas que se apercebiam que por detrás daquele marrão estava um rapaz bem jeitoso, interessante e totalmente material de namorado e que vinham a casa só para se meterem contigo, mas tu era sempre cordialmente pitosga. Foi preciso a Mafalda, já na Universidade, a abrir-te os olhos e a braguilha, para entenderes que nessas coisas, não há teoria que se compare à prática. Apesar de ela ter sido uma parvalhona que depois te largou de forma ignóbil, deves muito a ela se hoje és o mestre do flirt, trabalhando a tua combinação poderosa de dois dedos de testa e um palmo de cara.
E também sinto que a Ju realça o homem brilhante que és, tal como a Mãe para com o nosso pai. É fácil ver que encontras nela o apoio e a serenidade que precisas. E que retribuis com toda a paixão que um homem pode dar a uma mulher. Tens muita sorte de a ter a teu lado, mas ela não é menos sortuda.

Infelizmente, por muitos passos em frente que já foram dados, há dogmas bacocos que ainda persistem na nossa sociedade sobre o que é ser homem e ser mulher. Que faz com que tantos homens achem que ou têm tomates ou têm coração, como se fosse obrigatório escolher, ou pior, como se só ter tomates fosse a opção correcta. O Pedro ainda era pior, era daqueles que têm coração, mas que estão convencidos que só têm tomates. Felizmente, cresci com três homens que têm ambos e não se envergonham disso. Percebo muito bem agora o privilégio que foi crescer entre o afecto e a autoridade do Pai, a generosidade e a introspecção do Ricardo e a tua lealdade e sensatez. É graças a vocês os três que eu sei que os homens são seres fabulosos. Quantas mulheres não conhecerem senão a vossa faceta mais dura, fria e cruel, tornando-as descrentes e destroçadas?
Eu podia ser uma dessas mulheres, depois do que eu passei com o Pedro, quando eu movia montanhas por ele, e ele nem conseguia dar um passo em frente. E mesmo quando eu reconheci que lutava por uma causa perdida, foi tão difícil esquecê-lo. Mas a minha tristeza nunca se transformou em aversão, porque o mal que ele me fez não ofuscou o bem que ele também me deu, porque com vocês aprendi a distinguir os matizes do espectro masculino. E agora posso olhar para trás com um mínimo de mágoa e valorizar a nossa história como uma lição que tinha de aprender, que me fez crescer um pouco mais. Ou, como naquela canção da Christina Aguilera, "made my skin a little bit thicker."
Acredito que foi essa decantação quase científica que me faz apreciar as coisas boas quando elas surgem. (Digo "quase" porque como te disse, há coisas onde a prática arruma qualquer teoria.) E agora surgiu-me o Salvador. Sim, é como se chama o meu homem-mistério, não sei a Juliana já te disse. Falei-lhe um pouco sobre ele, num momento de cumplicidade e confidência feminina. A antiga Mónica não resistiria ao brilho de um homem daqueles, tão intenso (como o teu) e atirar-se-ia de cabeça. Mas a Mónica actual gosta de manter a cabeça à tona de água e vai com calma. Por isso, ainda não quero revelar muito mais sobre ele. Só te digo, que até agora, estou a gostar. Tanto do homem como do mistério

Espero que te estejas a defender bem desta vaga de frio, que por aí deve ser particularmente intensa. Também eu agora dou valor ao típico clima temperado português, se bem que já não tão temperado como dantes. Manda muito beijinhos à Ju, e vê lá se não a chateias muito. Tens aí uma mulher que merece o teu brilho. Acho que, tirando o pai dela, nenhum homem antes de ti soube como iluminá-la como deve ser. Por isso tem paciência com ela, mantém os olhos abertos tal como costumas abrir o teu coração, fá-la acreditar como eu acredito.

Aquele abraço da tua querida maninha,

 Mónica

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ensaio experimental

Quando dizem que a luz é a melhor amiga de uma modelo, não é à toa. Quem te vê nos outdoors, banhada pela luz, o teu corpo arqueado em ângulos sinuosos que te traçam uma sensualidade extravasante, a tua longa cabeleira ruiva esvoaçando numa rebeldia calculada, imagina-te uma deusa sensual, mitológica e inacessível.
Se eu não soubesse como te transformas de crisálida a borboleta à velocidade de um clique diante de uma máquina fotográfica, também eu seria mais um de que responderia com um incrédulo "Ah, pois", quando tu dizias que queria ser modelo. Mas até nas fotos que eu te tirava no liceu, ora nas saídas com a malta, ora improvisando ensaios, já tu pousavas para exercitar esse teu inesperado talento, eu conseguia ver essa metamorfose. Sempre que mostrava esses fotos a alguém, a invariável reacção.
Não acredito, é mesmo a Érica? Ela está mesmo bem nestas fotos. Está tão bonita! 
E de facto, custava a crer que aquela miudita caixa-de-óculos, ruiva e branquinha, de semblante fechado, magrinha com uma vagem, quase sem nenhum peito nem rabo pudesse mudar assim tanto sob a luz do flash. Às tantas, é por isso que ainda és pouco reconhecida na rua, porque circulas à vontade no teu modo Clark Kent de saias e só te transformas em super-heroína numa sessão fotográfica ou em cima de uma passerelle.
Sempre gostaste muito da ideia de seres um mistério para todos. Sem dúvida foi por isso que quiseste sempre cultivar a nossa amizade, porque para os outros era de facto uma amizade misteriosa. No liceu, eu era o desportista, o às do voleibol, o puto giro, popular e extrovertido, e tu eras a geek que andava sempre sozinha, que não trocava mais de meia dúzia de palavras com ninguém, sempre sozinha a um canto a ler, ou a observar tudo em redor como quem admira uma pintura abstracta. Ouvi rumores velados de que eu me aproximei de ti para te saltar em cima, movido por uma suposta tara por mosquinhas-mortas, embora a maioria acreditava que era por eu ser um bom rapaz e não querer deixar ninguém de fora e desintegrado dos outros. Se me perguntassem abertamente na altura, eu poderia dizer que era por gostar do facto de seres uma miúda inteligente, pouco dada a futilidades e dramatismos típicos da adolescência e sobretudo, porque eras uma boa ouvinte e sentia que te podia contar tudo, sem que me julgasses ou fizesses troça.
Mas agora sei que além desses motivos, era porque eu gostava de ti, Érica. Tal como agora sei que tu também gostavas de mim. Os teus sinais foram sempre muito subtis, quase imperceptíveis, e era miúdo demais para os detectar, mas agora sei que lá estavam. E lamento que não tenhas sido mais óbvia, devias saber que nessa idade nós, os rapazes, ainda não sabemos captar esses pequenos indícios dos ardis femininos, tem de ser mesmo tudo ali em frente, com desenhos do Pictionary, ou melhor, sinais gigantes de néon a piscar. Provavelmente, diria que sim, aliviado por teres dado o primeiro passo. Sim, Érica, também gosto de ti, quero namorar contigo, que se lixem as piadas da saloiada. 
Contudo, deves ter analisado tudo muito bem, pesado os prós e contras, para concluíres que não valia a pena arriscares o passo em frente. Iria ser esquisito, iria mudar as coisas, criar ciúmes e desconfianças, estragar tudo de bom que demorámos a construir. Sempre foste cartesiana, a analisar e sobreanalisar tudo. Sem dúvida que isso te dá muito jeito na tua carreira actual de manequim, consigo imaginar-te a assimilar como uma esponja as direcções dos fotógrafos e dos produtores, a procurares mentalmente quais as poses ideais diante do cenário com que te deparas e o produto que é preciso vender. Até acredito que foi após muita análise e reflexão que decidiste que a situação ideal para perderes a virgindade foi naquela noite em Albufeira, nas férias da Páscoa, em que te meteste na minha cama com uma caixa de preservativos e debaixo de um edredão experimentámos aquilo que só em lugares distantes das nossas mentes desejávamos viver.
Claro que nunca esqueci essa noite nem o que fizemos nesse novelo de ternura, desejo e embaraço. Se bem que prefiro recordar em particular uma noite chuvosa, umas semanas antes, onde me arrastaste para ver uma peça de teatro qualquer e no caminho de volta, eu puxei-te para debaixo de uma paragem de autocarro e beijei-te. Foi a única vez que te vi completamente desprevenida e adorei isso, embora eu depois tenha dito que fora uma vez sem exemplo.
Os anos passaram, já não somos uns miúdos, mas continuamos amigos. Apesar dos truques de magia dos soutiens que agora usas, tens ainda um peito pequenino, mas nem por isso menos apetecível. Continuas igual a ti própria, algumas das tuas manias extinguiram-se, outras ampliaram-se, mas ainda gosto de estar contigo.  Eu próprio também mantenho algumas manias, adquiri outras, e nem por isso deixaste de apreciar a minha companhia. A Érica manequim é bela e sensual, mas é da outra Érica que eu gosto. Se eu te dissesse que estou apaixonado por ti, como afinal sempre estive, arriscarias esse flash, só para ver no que dá? Podes esmiuçar cientificamente as vantagens e os inconvenientes ou então decidires, por uma vez na vida, fazer algo espontâneo, mas gostava que dissesses que sim. Eu por mim, acho que podemos ficar bem na fotografia, mas mesmo que não, mesmo que se estrague o filme todo, ao menos podes dizer que foi apenas um ensaio experimental. Vou procurar o ângulo onde a luz melhor me incide, diz-me qual é a minha melhor pose. Então, que dizes?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A Três Metros do Céu

Mónica:

Vê só como é a vida. De nós os três, eu fui o primeiro a andar de avião e o único que fez Erasmus. E agora anda o Nelson a fazer a vida dele lá pela Escandinávia, tu a acumular milhas aéreas, e eu é que estou aqui em Portugal e já faz dois anos que não vou ao estrangeiro, todo ocupado entre o trabalho, o Pai e oficializar a união de facto com o Filipe.
Mas não me queixo. O trabalho tem-me ocupado muito tempo e energia, mas este projecto é algo que me faz sentir feliz e realizado. E com vocês fora, fui eu que tive de acompanhar mais o Pai enquanto ele refazia a vida sem a Mãe, e no processo foi como se nos redescobríssemos um ao outro.

Por falar nisso, no outro dia o Pai contou-me como tu estavas tão preocupada quando eu fui fazer o Erasmus na Holanda. Também não era para menos, foi umas semanas depois do 11 de Setembro e nessa altura toda a gente estava cheia de medo de entrar em aviões. Até eu estava um pouco apreensivo, mas a ideia de andar de avião e viver num país estrangeiro pela primeira vez deixava-me muito entusiasmado e durante o voo, não pensei em terrorismos nem nada do género. Mas tu estavas tão preocupada com a hipótese de haver no avião um esbirro qualquer da Al Qaeda pronto a mandar-me pelos ares que quando aterrei em Amesterdão, ainda à espera das malas, foste logo a primeira pessoa a quem liguei e acho que o teu suspiro de alívio deve ter-se ouvido em todo o município. Longe de nós imaginarmos que um dia irias fazer vida de andar de avião.
Tal como longe de mim saber que também eu iria ter um romance de Erasmus, que terminou tão repentinamente quanto começou. Qual caixa de Pandora, o Johann soube como libertar todos os espectros emocionais que eu carregava desde sempre e quando dei por mim, já tinha mergulhado de cabeça.
Sim, eu sempre soube que era homossexual, tal como tu, o Nelson e os pais sempre souberam, mesmo que nunca falássemos disso, qual elefante no meio da sala. Se por um lado, não tinha dúvidas do que eu sentia e sentia a óbvia curiosidade de passar da teoria à prática, por outro sabia que muita gente não aceitaria isso tão bem como a minha família. Se eu já tinha chatices que cheguem dos bullies só por ser diferente da maioria do rebanho escolar, se eu lhes desse mais razões para levar porrada e, como sabes, quem me tira o sossego da minha vida, tira-me tudo. Para não falar dos inevitáveis conflitos interiores: "Porque é que sou assim? Porque é que não sou como os outros? Porque é que dizem que sentir o que eu sinto é errado e nojento? Serei uma pessoa abominável?"
Foi preciso eu estar noutro país para me sentir suficientemente confortável para verbalizar os meus sentimentos e os meus dilemas. Algo que nem sequer fizera convosco, embora já soubesse que vocês iriam apoiar-me, mas quando temos uma semente de medo e dúvida tão enraizada em nós, isso paralisa-nos.

Para além do excelente contributo académico que estudar um semestre na Universidade de Haia me proporcionou, também o simples facto de viver num país diferente e conviver com gente de várias nacionalidades abriu-me os horizontes, dando-me ideias sobre alguns dos rumos que queria tomar na vida. Até mesmo a língua acabou por não ser problema de maior, apesar de não ter retido o pouco que consegui aprender daquele idioma arreganhado, nem sequer o frio em doses a que não estava muito habituado por cá. Acabaram por ser poucos os momentos em que me senti um peixe fora de água.
Imbuído nesta expansão de espírito, arrombei a caixa de Pandora de emoções que mantive fechada a cadeado durante toda a minha vida. Primeiro porque estava num país onde há séculos o pragmatismo prevalecia sobre os dogmas religiosos, e por isso não admira que tenha sido um dos primeiros a entender o quão redutor é restringir as relações afectivas e físicas ao binómio homem/mulher. Depois porque um austríaco de olhos verdes fez-me viver tudo aquilo com que mal me atrevia a sonhar.
Nós sabíamos que era uma loucura, que não era justo nos apaixonarmos quando sabíamos que não iria durar, que não valia a pena criar ilusões de que poderíamos continuar a relação quando cada um voltasse ao seu país. Mas o que havia entre nós era tão forte que tudo o que podíamos fazer era vivê-lo e tentar esticar o pouco tempo que dispúnhamos tanto quanto pudéssemos.
Como é que eu não sabia até então como é tão belo o amor e tão ardente a paixão? Como é alucinante sentir o prazer a explodir nos nossos corpos? Como vicia mais do que qualquer droga, como tudo isto nos deixa tão parvos e tão esclarecidos ao mesmo tempo? Como tudo dói quando chega ao fim?
Na minha última noite em Haia, eu e o Johann fizemos amor pela última vez, num acto que falou mais do que todas as palavras de despedida. Deixei-o adormecido no quarto dele, entrei no meu e estendi-me na cama, pronto a romper em choro. Mas eis senão que oiço alguém a chorar, e não era eu. Era a Kasia, uma polaca, também ela a carpir o fim de um romance Erasmus com um italiano. Fui ter com ela, limpei-lhe as lágrimas e ela abraçou-me. Ficámos ainda algum tempo abraçados em silêncio até ela se recompor e agradecer-e. Senti que ao consolá-la, estava também a consolar a mim próprio. Acabei por não chorar, e assim embarquei  no voo de regresso, com a sensação agridoce de que eu vivera este tempo todo a três metros do céu e que chegara a hora dos meus pés reencontrarem o solo.

Lamentei só terme inscrito no Erasmus por um semestre e não para o ano inteiro, mas era o meu último ano de curso, queria viver a minha última Queima das Fitas, tinha medo que houvesse problemas com a equivalência dos créditos, de perder matéria no curso cá que fosse importante, ou que não me tivesse conseguido adaptar bem a viver tanto tempo na Holanda. Tudo receios infundados. Mas agora não havia nada a fazer e a vida seguiu o seu caminho.
Mesmo assim, as marcas do Johann permaneceram muito tempo. Ele elevou de tal forma a fasquia com o que vivi com ele que nos anos seguintes não me conseguia interessar por ninguém e todos aqueles que se interessavam por mim perdiam redondamente na comparação ao Johann. No máximo dos máximos, muito de vez em quando, se a minha libido prevalecia e a solidão apertava, cedi a umas aventuras de uma noite.
E já quando eu receava que nunca mais iria viver nada parecido, apareceu o Filipe. Então percebi que o fogo do amor tanto pode surgir abruptamente da chama como erguer lentamente das brasas. Mas essa história já tu conheces.

Entretanto, minha querida maninha, também tu já perdeste o medo de voar, já estiveste em mais países que eu, já amaste e sofreste por amor. Haverá de chegar o dia em que vais querer deixar a casa do Pai, que ainda é a tua morada oficial em Portugal, e construir o teu lar. Tal como eu o fiz, semeando os meus projectos aqui no nosso país, à espera de colher os frutos, e escolhendo o Filipe para a pessoa a quem eu quero voltar quando chego a casa. Pode ser que o faças noutro país, como o Nelson. Ou então, que continues a voar pelo céu de Europa, mas fazendo de o coração de alguém a tua casa. Quem sabe se não esse homem-mistério de quem tens sempre vontade de procurar quando estás por cá?

Muito e bons voos para ti
do teu irmão Ricardo.