quinta-feira, 27 de março de 2014

Voos Sensitivos

Francisco:

Tanto tempo a imaginar como seria ter a Cláudia nos meus braços e na minha cama e agora que finalmente não é só a minha imaginação, mal consigo acreditar. Eu estava cheio de medo que, de tanto idealizar esses momentos, eu acabaria por me decepcionar. Mas não foi o caso, longe disso. Foi ainda melhor. Nem sei como nem sequer me senti nervoso e consegui fazer tudo bem, a rendição dela inspirou-me. A Cláudia não disse muito, mas deu para ver que ela ficou impressionada e surpreendida.
Até eu próprio me surpreendi. Como é sabido, não tenho muita experiência. Ela foi apenas a terceira mulher com quem eu tive relações. Além dela, só houve a Mónica, os únicos momentos minimamente nítidos numa relação que foi tão obscura para os dois e que terminou tão abruptamente, antes de poder ter sido algo mais luminoso. Depois a Nuria, a espanhola que estava em Erasmus no terceiro ano do meu curso, que numa noite mais regada, deitou-me a mão e eu deixei-me ir. Ainda não sei o que um mulherão daqueles viu em mim, mas seja o que for, só lhe agradeço a clarividência.

Como sabes, quando lhe contei que gostava dela, a reacção da Cláudia não foi a melhor e ainda andei uns dias aflitos e só me apetecia danar-me por ter seguido o teu conselho. Felizmente que pouco depois ela decidiu dar-me uma oportunidade. Nesse aspecto, ela é igualzinha ao Pedro. Quando algo ou alguém lhes troca as voltas aos seus planos ou às suas convicções, ficam em pânico e só depois é que ajustam as agulhas. Por isso é que volta e meia eles andam às turras e a Cláudia se compraz em contrariá-lo. 
Qual não foi o meu espanto quando recebi o convite dela para regressarmos ao Bar Cáspio. Pensei bem, tu és porreiro, acho que te posso dar uma oportunidade, vamos com calma. Farto de ir com calma estava eu, mas não calei as ansiedades. Conforme os teus conselhos, fui elaborando o plano para que ela gradualmente deixasse de ver em mim apenas o Tomás amigalhaço/tipo porreiro/colega do irmão/quietinho-e-bem-comportado para lhe revelar um Tomás deus-do-charme-e-da-sedução. Um Tomás que até eu próprio não tinha certeza que existia mas que também habita em mim e que também a deseja. Um heterónimo cujo escrutínio foi essencial para que ela deixasse as dúvidas e percebesse tudo aquilo que estava disposto a lhe entregar. Essa metamorfose apanhou-a de surpresa e quando demos por nós já não havia nenhum escrúpulo possível e só havia nós, os nossos corpos e o nosso prazer, além das coisas visíveis e invisíveis.

Mais uma vez, a Cláudia vê-se de novo em terreno desconhecido, de voltas trocadas e procurando uma bússola para os seus afectos. Eu próprio não tenho a certeza se o próximo passo não seja em falso e também preciso pensar. Mas não me importo, pois pelo menos ela não quer fugir, intrigada em descobrir o que mais lhe posso oferecer. E tanto que eu tenho, mais até do que aquilo que sonho em receber dela. Tantas palavras, tantos gestos, tantos voos sensitivos. Mas por agora vamos calma. E eu sempre ganhei mais em manter a calma do que em perdê-la.       

Tomás
    

quinta-feira, 20 de março de 2014

Ao Ponto de Querer

Quero-te,
ao ponto de não conseguir lembrar-me se já quis alguém assim.
Ao ponto de não ter a certeza se já quis outras mulheres.
Ao ponto de me baralhares os sentidos, de me sentir capaz de ouvir cores e tactear cheiros.

Apetece-me ser meigo contigo e derreter-me em doçuras.
Apetece-me ser bruto contigo e de te ver entregue à minha barbárie.
Ser indecente e sentir que tu gostas disso.
Ser terno e dócil e sentir que tu precisas disso.

Conduzir os meus dedos por cada milímetro da tua pele
e deixar nela um rasto de brasas,
que derretem qualquer reserva que ainda possas sentir.
Ouvir da tua boca palavras sujas que de outra forma nunca ousarias verbalizar.
Dizer-te indecências que de outra forma eu nunca diria a ninguém.

Apetece-me ser homem, carne, músculo, carrasco, servo.
Apetece-me ter-te mulher, cetim, açúcar, presa, deusa.
E entre o que eu puder ser e o que tu ousares ser,
Sermos coração, paixão, pecado e amor.

Perder conta aos toques e beijos,
ao suores e aos cansaços, a todas as fusões e osmoses.
Romper com os riscos dos limites
e descobrir que não havia nenhum risco a pisar.
Acreditar de que todo o mundo cabe em poucos metros quadrados
e os corpos são vícios insuperáveis e alavancas imprescindíveis.

Quero-te,
ao ponto de um querer que me mata e que me alimenta.
Ao ponto de sentir que só por este querer é que eu vivo.
Ao ponto de sentir que só vivo por me quereres também.


segunda-feira, 10 de março de 2014

Tiro ao Melro

Sei muito bem aquilo que dizem de mim, mas quero lá saber. De facto, tenho pena de não saber dissimular melhor de que não nasci em nenhum berço de ouro e é certo que por vezes ponho o pé na argola. Mas que se lixe, já que sou mesmo assim semi-pindérica, ou não me chamasse Carla Andreia, mais vale sê-lo abertamente do que me armar em sonsa como tantas que eu conheço e que têm pergaminhos tão ou mais duvidosos. O João também não é lá muito bem nascido, mas para os homens, ser bem endinheirado é quase a mesma coisa. É mais às mulheres que se fazem esse tipo de cobranças.

Quem nunca quis subir na vida que me dê o primeiro tiro antes de me chamar pistoleira. Cada um joga com os trunfos que tem, e a mim calhou-me um belo palmo de cara e corpo e algum talento para o jogo de anca. Deitei as minhas cartas e por imensa sorte calhou-me o João, ainda jovem, bem bonito e em franca ascensão. Como disse, o João também não nasceu endinheirado e se é todo um gentleman foi por puro auto-didactismo, e se eu atino minimamente com as etiquetas e com os salamaleques, devo-o sobretudo a ele. Ainda hoje não sei bem como é que ele conseguiu ver em mim um diamante em bruto e assim promover-me de secretária a esposa, mas só tenho a agradecê-lo por isso. 

Sim, admito que tomei o João como alvo e abri-lhe às pernas à primeira oportunidade. Mas isso por si só não é nenhuma garantia de sucesso e ele podia facilmente despachar-me. Só que não o fez. Também não tenho a ilusão de que o João ficou logo caidinho para mim, porque ele é esperto demais para isso e não me admiraria que ao princípio um dos motivos dele para me ter pedido em casamento era para ter uma mulher-troféu toda boazona para exibir aos amigos, rivais e afins. Por isso, e já que me posso permitir a isso, esfalfo-me no ginásio, faço todos os tratamentos de beleza que posso e estou atenta às modas e já ganhei um bom olho em reparar naquilo que me fica a matar. Coisa que já fazia antes, dentro do que me era possível. E ao menos não sou dessas que não fazem a ponta de um chifre em casa. Posso não saber cozinhar grande coisa mas safo-me minimamente e não tenho alergia a aspiradores e esfregonas. 
No entanto, e mesmo que ninguém acredite, não é mentira nenhuma quando afirmo que amo o João e só espero que ele tenha metade do afecto que eu tenho por ele. Sim, começou com um interesse mas será assim tão inacreditável que algo mais tenha surgido depois? 

Creio até que casaria com ele mesmo que fôssemos uns pobretanas como os meus pais. Mas é algo em que não me detenho muito a pensar, até porque não vale a pena. No fundo, até admiro bastante os meus pais e tenho alguma pena de não ter herdado mais da sua bondade e honestidade. Mas também sei muito bem como tantas e tantas vezes como foram espezinhados ao longo da vida por serem demasiados honestos e cedo percebi que não era isso que eu queria para mim. Já dizia a Marilyn Monroe que infeliz por infeliz, antes numa limusina do que num autocarro.

Por isso, estou infinitamente grata por ter chegado aonde cheguei, mesmo que por caminhos não muito cristãos e faço o que posso para assim me manter, porque nunca se sabe para o que uma pessoa está guardada. E quero lá saber se me chamam interesseira, se afirmam à boca cheia que subi na horizontal, se troçam sem disfarçar muito das minhas argoladas e do meu nome Carla Andreia. Se nasci com jeito para o tiro ao melro, o melhor é exibir com orgulho a minha espingarda.