quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gosto do Natal

Gosto do Natal, até das pirosices.
Gosto de tudo que é previsível de acontecer Natal
e gosto de acreditar que mesmo assim vai acontecer alguma boa surpresa.

Gosto dos barretes de Pai Natal, das mesmas luzes de Natal a iluminar as ruas e das árvores de Natal, 
até das mais escanifobéticas e incipientes
e dos presépios em movimento.
Gosto dos postais e dos e-mails e as imagenzinhas de Boas Festas no Facebook.

Gosto dos Ferrero Rocher, Mon Cheri, Merci e After Eight
do cheiro a óleo na cozinha
do açúcar e da canela generosamente polvilhados nos doces fritos
dos sortidos de bolachas da Cuétara e da Triunfo
do azeite a embeber o bacalhau, as batatas e o ovo cozido.

Gosto do Last Christmas, Do They Know It's Christmas, All I Want For Christmas Is You,
do Shane McGowan a rosnar o Fairytale Of New York,
do A Todos Um Bom Natal e do Petersburger Schlittenfahrt.

Gosto do "Natal dos Hospitais", dos indultos da Presidência da República, das maratonas de filmes na TV.
Gosto dos "Sozinho em Casa" 1 e 2, da "Música No Coração" e "Do Céu Caíu Uma Estrela",
da mensagem do Cardeal Patriarca.

Gosto das lojas atafulhadas de gente, do papel colorido, das fitas douradas.
Gosto da Leopoldina e da Popota.
Gosto das colectâneas de música NOW, dos álbuns best of
dos novos tablets e smartphones,
dos perfumes Givenchy, Lancôme, Cacharel, Paco Rabanne
das caixas do Old Spice, dos jogos da Wii e das Playstations
das promoções "pague um DVD e leve dois"
dos livros best seller, das revistas de previsões astrológicas e das agendas novinhas em folha
dos gorros para os bebés, das luvas para as mães, dos cachecóis para os pais
dos packs de três cuecas e de cinco pares de peúgas.

Gosto de recordar os meus Natais de miúdo
a família reunida em casa da Avó
a roda de dentada de madeira para cortar a massa dos coscorões
as overdoses de anúncios a brinquedos aos sábados de manhã
os artistas pimba do Natal dos Hospitais que não eram tão pimba como os de hoje
as árvores com algodão a imitar foleiramente a neve
o alarve do avô a comer chocolates das Fantasias de Natal
o coelhinho que foi com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo
do papel de embrulho feito em pedaços 
os Ministars e os Onda Choc a cantar na TV
as festas de Natal da escola

Gosto de saber que eu cresci
e que para mim o significado simbólico do Natal ultrapassa largamente o significado material
que a minha alegria está naquilo que dou
que me interessa quase nada aquilo que possa receber (quase...)

Gosto de pensar que todo os stresses e chatices desta quadra valem a pena.
Gosto de pensar que existe magia e boa vontade debaixo do cinismo.
Gosto de ainda gostar do Natal e de acreditar que gostarei sempre.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Silêncio é de Ouro

Ângelo, seu filho da mãe. Morreste assim de repente, logo tu que tinhas uma saúde de ferro, apesar de te queixares de dores que só existiam na tua cabeça e de teres "é tomar um comprimido" como resposta a todas as maleitas que tu e eu tínhamos. O certo é que nunca faltavas à hidroginástica e às caminhadas e estava certo que eu ia primeiro que tu. Mas o certo é que anteontem, acordei e o teu corpo na cama ao lado estava frio e sem vida.
E agora deixas-me aqui e estou sozinho outra vez. Já não me bastava perder há três anos a minha Adelina com quem estive casado quarenta e seis anos (mais sete de namoro) numa trombose e ter os meus três filhos longe, um na Alemanha, um na Suíça e outro em Lisboa, mas sempre tão ocupado entre o trabalho e a família dele que se vem cá acima uma vez por mês já é muito. Mas não reclamo, porque este lar é caríssimo e custa muito a cada um deles, já que a minha reforma pouco ajuda, e pelo menos sempre telefonam regularmente e tiveram a preocupação de procurar um sítio em condições em vez de me espetarem num pardieiro qualquer, como muita gente que eu conheço. Ainda assim, maldita a hora em que me atribuíram como teu colega de quarto. E sobretudo, maldita a hora em que te enfiaste na minha cama e me fizeste coisas que não são para se dizer. 

Nem sei bem porque é que eu deixei. Se calhar foi saudades da Adelina, quase cinquenta anos a partilhar uma cama, por entre tempos mais prósperos e outros em que tínhamos pouco mais do que um ao outro. Décadas em que nos amámos, primeiro com a ânsia de jovens, depois com a solenidade de adultos e por fim com a ternura de velhos. Creio que sozinho na nossa casa, com tudo o que me lembrava dela, eu ainda dava em doido. Por isso, assim que os meus filhos me falaram em ir para um lar, ao menos estava acompanhado e tratavam de mim, disse logo que sim, está bem. Mal sabia eu que iria partilhar um quarto contigo. E às vezes a cama e aquelas coisas que não são para se dizer.

Pelo que dizias, sempre foste assim. Se fosse hoje em dia, quando até já se pode casar homem com homem e mulher com mulher, talvez nunca tivesses guardado isso no silêncio e poderias fazer isso às claras com quem quisesses. Mas os tempos eram outros, essas coisas, feitas pela calada, não se diziam. Mas tal como vim a saber que toda a gente aqui sabe o que tu és embora nunca ninguém tenha dito nada, também a tua mulher sempre soube. Naquele tempo, para uma mulher, mais valia ter uma amostra de homem do que não ter homem nenhum, e por isso não exigiu mais de ti do que lhe dares filhos e cumprires as tuas responsabilidades de pai. Como vocês tiveram logo duas gémeas, ela não mais te procurou e entreteve-se entre os afazeres do trabalho e das miúdas e tu pudeste fazer o que querias fazer com quem calhasse, quando calhasse, sempre com toda discrição, claro. Só com ambos reformados e as filhas encaminhadas é que vocês se separaram: ela ficou com a casa e tu vieste para aqui.
Não vou ser hipócrita e dizer que não sou como tu. Afinal de contas, não me neguei a nada que me propuseste. Mas antes de ti, nunca sequer me ocorreu fazer isso que fizemos sem nada dizer. Os meus interesses foram só para mulheres e até confesso que até foram umas quantas que desejei, antes e depois da Adelina, embora tenha sido sempre fiel. Mas no fundo, contigo, a questão nunca foi seres homem como eu, a questão é que tinha alguém para abraçar, ter o que ainda podia ser mais parecido com amor no que me restava da vida. Sempre eras um conforto que eu tinha contra o espinho da minha solidão. Mas até me isso foi negado e partiste para o outro mundo primeiro que eu. Como é que me pudeste fazer isso?

Por isso, já decidi. Lembras-te quando o Virgolino, com uma Alzheimer tal que nem sabia a quantas andava, se enfiou no nosso quarto, revolveu tudo e até mijou no roupeiro, e assim ficámos a saber que ele era pai da Directora e que estava no lar à pato num dos melhores quartos? Quando a esse lhe der o badagaio - e isso está por dias - peço à Directora para ir ao quarto dele em troca de manter o meu bico calado. Já que estou fadado para passar o tempo que me resta sozinho, ao menos passo-o sossegado e bem arranjado no meu canto, a pensar na minha vida, na Adelina, nos meus filhos e netos e nas coisas que fiz contigo mas que nunca poderei dizer. Sempre ouvi dizer que o silêncio é de ouro.            

domingo, 8 de dezembro de 2013

Happy Ending

Que festa esta aqui na Cidade dos Anjos. Com tanta cor, tanta luz, talhada mesmo à moda de Hollywood. O Coliseu de Los Angeles ao rubro, o Lionel Richie a cantar. E eis que tudo estoira num turbilhão de aplausos quando entro no estádio, ladeado pelo Spedding e pelo Treacy. Pode ser que eu pareça ter um ar compenetrado enquanto caminho para o pódio, mas por dentro ainda não acredito que tenho um lugar de honra nesta festa olímpica ao estilo Hollywood. Logo eu, o Carlitos de Vildemoinhos!

Em apenas um segundo, vejo toda a minha vida desfilar: a minha infância em Vildemoinhos, a minha Mãe a fazer contas como ninguém apesar de não saber ler e escrever, o meu Pai que ganhou num jogo da malha ao meu professor da 1.ª Classe (e este, ressabiado, fez-me repetir o ano), o meu primeiro trabalho a dar serventia a pedreiro, outro a fazer recados ao ourives e a chegar antes que ele desse conta que tinha partido, os meus primeiros passos no atletismo, ver o mar pela primeira vez aos dezassete anos, o rumo a Lisboa e ao Sporting onde prosperei sob a sábia orientação do Prof. Moniz Pereira e onde conheci a Teresa, as minhas primeiras grandes vitórias, os despiques com o Mamede, a minha estreia olímpica em Munique, o finlandês Viren a ultrapassar-me em Montreal, o nascimento dos meus filhos, a travessia no deserto por entre cactos de lesões, a acupuntura do mestre Kobayashi, o atropelamento na Segunda Circular, a partida para a Califórnia, as medalhas de bronzes da Rosa e do Leitão, o meu ataque aos 37km deixando o irlandês e o inglês para trás só parando na linha de meta onde encontro o ouro olímpico, onde no meu coração coube a alegria de dez milhões de portugueses.

Nestes últimos dez anos, tanto que o meu país mudou depois de conhecer a liberdade. O futuro ainda é incerto, o presente ainda é duro, o passado ainda marca. Mas existe esperança, agora que a poeira da revolução assenta e o sabor da liberdade já está mais entranhado que estranhado. Foi esta esperança que carreguei comigo ao longo destes quarenta e dois quilómetros. Mesmo tão longe, senti o meu país a correr comigo, ouvi os corações dos portugueses a baterem ainda mais acelerados que o meu, bem como os gritos de júbilo quando cruzei a linha de meta. 

Recebo a medalha de ouro das mãos do Sr. Samaranch e de repente, pela primeira vez, soa o hino de Portugal em solo olímpico. E sinto-me como o Homem do Leme do Fernando Pessoa, cá no pódio sou mais que eu. Sou todo o Portugal a ecoar pelo mundo, debruado no verde e vermelho da bandeira.

Este filme teve drama, comédia, suspense, suor, lágrimas, sangue mas como qualquer filme de Hollywood que se preze, tem um final feliz com as palavras "THE END" a surgirem no ecrã ao som de uma música triunfante. Para mim e para o meu país, há vida para além dos filmes e ela segue dentro de momentos. Mas que já há muito que nós merecíamos um happy ending destes.    

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Base Sólida

Miguel

Raios partam o teu primo Francisco. Tive a feliz ideia de seguir o conselho dele e pôr as minhas cartas na mesa com a Cláudia. Levei-a a jantar ao restaurante japonês que ela gosta e depois fomos tomar um copo ao Bar Cáspio, tentando imprimir uma subtil matiz de romance para que não fosse apenas uma saída como amigos. O meu plano era fazer uma grande declaração, dizer-lhe tudo o que ela significa para mim, que já há muito que eu não a vejo apenas como amiga, que com ela sinto-me como nunca senti ao pé de outra rapariga. Na melhor das hipóteses ela se aperceberia que o tipo decente que ela procura, longe dos estroinas com quem ela andou no passado, esteve sempre debaixo do seu nariz, que aliás ela também já me andava a ver com os outros olhos, que já não era apenas o discípulo e amigo do seu irmão e terminaríamos num tórrido beijo com sabor ao Campari que ela estava a beber.
Na pior das hipóteses, ela ria-se de mim, dizia para não ser tonto, que só gosta de mim como amigo e algo mais estava completamente fora de hipótese, que aliás anda de olho num manfio qualquer, mas pelo menos as minhas dúvidas acabariam logo ali.

Mas não, estive sempre a adiar, os meus discursos soavam fabulosos na minha cabeça mas quando abria a boca para falar não me saía nada. Foi então à saída do Cáspio, ela olhou para mim, perguntou "Tomás, o que tens?" e sem saber como, beijei-a. Não pode ter sido exactamente como eu imaginava, nem sequer soube a Campari, mas também foi bom. Até porque ela não ofereceu resistência e também entregou-se ao momento e durante esses breves segundos, parecia que o universo iria ficar alinhado. Só que depois, ela ficou ainda mais confusa que eu e disse-me que era melhor ela ir sozinha para casa. Ainda lhe disse "Cláudia, sabes que eu gosto de ti, não sabes?" e ela ainda se virou para responder um "Sei, sim!". Por um lado fiquei a saber que não lhe era indiferente, mas por outro, o facto dela ter-se posto a milhas logo a seguir, deixou-me desolado. Pior que um não, só mesmo um nim.

O Pedro diz sempre que se um homem que não é feio nem parvo, tem as mulheres que quer, mas não é assim tão simples. Nem todos foram abençoados com a confiança de quem caminha numa corda bamba sem recear a queda, como ele ou o Francisco. Tu é que me podes compreender melhor: se hoje tens a capacidade de conquistar um mulherão como a Sandra, foi algo que conquistaste com muitos erros, second guessings e batalhas interiores. Já eu não só sou extremamente tímido e introvertido como o meu único relacionamento mais significativo acabou bruscamente, quando ainda nem se podia considerar oficialmente um namoro. Ainda hoje penso se podia ter feito alguma coisa para evitar que a Mónica se atirasse de uma ponte e entristece-me saber que aquilo que estava a nascer entre nós não foi suficiente para se agarrar à vida. Só mais tarde vim a saber que ela tinha sido vítima de abusos sexuais em criança que a remeteram para uma escuridão que nem as minhas ténues centelhas foram suficientes para ela poder iluminar uma fuga.

E agora temo que com a Cláudia, a história termine mesmo antes de começar. Resta-me a esperança de que ela dissipe as dúvidas e perceba que da nossa amizade possa surgir algo bem intenso e sólido. Se não o fizer, vai-me custar muito mas que diabo, eu não vou morrer por causa disso. Sobrevivi aos olhares incompreendidos, aos comentários em surdina de certos familiares, ao bullying no 3.º Ciclo, à morte do meu Pai e aos trambolhões e quedas que dei quando perdia o equilíbrio da corda bamba. Por isso, acredito que não há nada, por mais triste ou trágico, que me impeça de me erguer de novo.  Paguei um preço alto por aquela base sólida de amor-próprio que se mantém em pé quando os meus alicerces tremem e mais ninguém, nem mesmo aquela que eu amar, seja quem for, me poderá vender algo em troca.

Tomás