segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Menina Jesus

Mónica:

Não é que o nosso primo pôs no Facebook uma foto daquele Natal em que o Tio Armando resolveu mascarar-se de Pai Natal? Apareces lá tu chorosa com a barba que tinhas acabado de arrancar na mão, enquanto o resto da família está perdida de riso. E ano após ano, toda a família lembra-se daquele Natal e sei que ainda hoje, quando se fala nisso, por muito que disfarces, ficas toda envergonhada.
Por isso, e como sei que deves ter ficado toda abespinhada e já deves ter amaldiçoado o David (e não me digas que é mentira, quem não te conhecer que te compre!), resolvi contar-te uma história do teu primeiro Natal. Obviamente que não te lembras, e não há fotografias desse ano, mas foi um Natal que me ficou sempre na memória. Quem sabe se assim não te ajuda a eclipsar as memórias do Natal em que revelaste, não a careca, mas a falsa barba do tio?

Estávamos em 1984. Tinhas nascido há dois meses. A Mãe estava em casa de licença de parto, e teve nesse ano mais tempo para dedicar às tarefas natalícias. Ainda por cima, o Pai, todo babado por finalmente ter uma menina, também se oferecia para também para tratar dos teus cuidados sempre que era necessário. Ele mudou mais fraldas tuas do que minhas e do Ricardo juntas e até foi ele que te deu o teu primeiro banho. A Mãe até estava espantada com tanto desvelo raramente visto comigo ou com o Ricardo, mas sabia que aliando a alegria de ter finalmente uma filha e a experiência de já ter dois filhos, ele já dava bem conta do recado. E como era menos uma preocupação, também era bom para ela. Além do mais, eu e o Ricardo fomos sempre donos dos nossos narizes e não tivemos quaisquer ciumeiras.

Nesse Natal, eu tinha seis anos. Tinha acabado de entrar para a escola primária e sentia-me todo importante por já andar na escola e fazia por cumprir todas as responsabilidades, dos trabalhos de casa até à arrumação do cacifo. No início do mês de Dezembro, os professores tinham pedido para os alunos trazerem elementos para formar um presépio gigante no átrio da escola. Cada um trouxe uma figura ou algum material para fazer o presépio e ficou uma coisa digna de se ver. Com umas caixas de cartão, tinham feito um monte do meu tamanho coberto de musgo, entrecortado por um papel de prata a fazer de rio onde puseram patos. A encosta estava polvilhada de pastores, ovelhas e até umas casinhas. E lá no alto, a gruta com uma representação muito sui generis da Natividade, pois tinham trazido dois São Josés e os professores devem ter decidido que não valia a pena a chatice de deixar um de fora, por isso lá estavam os Josés de um lado, a Maria do outro, e o Menino Jesus ao meio. Eu estava muito orgulhoso de ter sido eu a trazer o Menino, que fazia parte do presépio que todos os anos a Mãe armava debaixo da árvore lá em casa.
Como era hábito, no último dia de escola houve uma festa, com cada turma a actuar com a respectiva cantilena. Depois seguiu-se a sempre desejada hora de encher o bandulho com todas as guloseimas que cada um trouxera. Estava eu alegremente com uma fatia de torta Dan Cake na mão quando verifiquei, para meu choque, que o Menino Jesus não estava no presépio. Alguém o tinha roubado! Dada a situação, fiz aquilo que um miúdo de seis anos, inteligente e responsável como eu, era suposto fazer: desatei a chorar que nem um desalmado. Quem fora o malvado que tivera a ousadia de roubar o Jesus do presépio? Foi então que a festa acabou em tragédia, com a maioria dos miúdos também a chorar: alguns em solidariedade para comigo, outros a fim de clamar inocência do furto. Desnorteados com a situação, os professores não tiveram o remédio do que deixar tudo em águas de bacalhau, dar a festa por encerrada e tentar consolar a todos.

Porém, uns dias depois ainda estava triste pelo sucedido e nem o facto de os pais dizerem que iam comprar outro Menino Jesus para o nosso presépio, me deixava mais animado. Mas um dia, eu e o Ricardo estávamos a ver televisão, provavelmente o Natal dos Hospitais, e a Mãe veio-se juntar a nós na sala contigo ao colo. Foi então que o nosso irmão, já na altura sempre atento a tudo como só ele, chega-se ao pé de mim e diz-me:
- A Mónica pode ser o Menino Jesus.
- O quê?
- O Pai é José como o José, a mãe tem Maria no nome como a Maria e a Mónica é um bebé como o Menino Jesus.
- Mas a Mónica é uma menina, não um menino.
- Não faz mal. Faz de conta. 
Pensei um pouco no que o Ricardo disse e cheguei à conclusão que se não havia mal nenhum em ter um presépio com dois São Josés, também não deveria fazer assim tão mal em haver uma menina a fazer de Jesus. Mais tarde, quando chegou a casa, o Pai veio ter comigo e disse:
- Olha, Nelson, comprei outro menino Jesus para o presépio. Não quero é que fiques triste no Natal.
Ao que respondi:
- Não estou triste, Pai. Nós já temos uma Menina Jesus. - e apontei para ti, que dormias pacificamente na alcofa.
- Tens razão.

Quando chegou a noite da Consoada, eu e o Ricardo estávamos junto à árvore a admirar com uma quase devoção as luzinhas coloridas e intermitentes, pois até esse ano só enfeitávamos a árvore com fitas, bolas e pedaços de algodão, daí que ter pela primeira vez uma árvore de Natal com luzes a piscar parecia algo para além de fantástico. Foi então que me lembrei de lhe perguntar:
- Se a Mónica é o Jesus, a Mãe é a Maria e o Pai é o José, nós somos o quê?
- Somos os pastorinhos que viemos dar os parabéns por ela ter nascido.
Mais uma vez, achei graça à ideia do Ricardo. Na altura, só abríamos as prendas na manhã do dia 25, tu depois é que implantaste a tradição de abrir à noite quando, três Natais depois, não havia quem te arrancasse  de perto das prendas debaixo da árvore até à meia-noite. Mas até irmos deitar passámos o resto da noite de 24 junto da tua alcova, desempenhando o papel de pastorinhos a adorar o Menino, ou melhor, a Menina Jesus. Desde então, nunca mais dei mais importância aos bonecos do presépio, pois sentia que nós formávamos um presépio de carne e osso.

Espero que tenhas gostado desta história, creio que ninguém ainda tinha-te contado isto. Estou muito ansioso para te rever e a Ju está louca por finalmente conhecer-te a ti, ao Pai e ao Ricardo. (É pena que nunca possa vir a conhecer a Mãe...) Aqui há neve com fartura há que tempos, e embora seja bonito de ver, tenho saudades do sol de Inverno português. Que até lá tudo te corra pelo melhor!

Feliz Natal,

Nelson 

P.S.: Quando desmontaram o presépio da escola, acharam o Menino Jesus desaparecido. Havia uma parte descolada no cartão da zona da Natividade e o Menino tinha rebolado  lá para dentro, sabe-se lá como. No Natal, ele há cada coisa mais inacreditável!