sábado, 31 de março de 2012

Talvez fosse só isso

Caminhava pelo túnel, sem outra esperança
senão a promessa de luz algures lá na frente.

Mas o breu pintava o ar, as mãos esfoladas eram guias
tacteando as paredes rasgadas.

Pés arrastados sem saber onde viria a próxima armadilha
que o deitaria ao chão.

E pensava porque continuava ali, perdido no silêncio cego agarrado à teimosia
da sede de esperança.

Já era tarde para voltar atrás e mesmo que não fosse, de pouco adiantaria.
Já era água que passara por debaixo de ponte.

Porém o terreno ficou mais plano, as paredes menos rugosas.
e o coração deixou o sobressalto para saborear aquele momento de vago sossego.

Ainda não sabia o que aguardava nos passos seguintes,
só sabia que o coração estava magoado,
mas tinha ainda vida a pulsar no sangue 
e talvez fosse só isso que precisava.

E continuou a avançar...

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sim / Não / Vou Pensar

Mónica:

Para o meu sobrinho, a minha namorada é uma boneca de banda desenhada gorducha, baixinha e dentuça, de vestido vermelho e com um coelho azul atrelado. Há uns dias, ele andava de volta dos meus antigos livros da Turma da Mônica e apontou o dedo à dita cuja na capa, e disse:
- Esta é a tua namorada.

Já moro sozinho há seis anos, mas já parece uma eternidade. Quando entro no meu antigo quarto da casa dos meus pais é como se entrasse numa cápsula do tempo. A cama ainda tem o mesmo edredon azul-escuro. Os meus troféus do hóquei em patins orgulhosamente alinhados na estante sobre a secretária, juntamente com várias fotos emolduradas de mim ao longo de várias idades: eu com os vários equipamentos do hóquei, nas férias em Buarcos, com o traje académico, com o bibe escolar, segurando a vela da minha primeira comunhão, num banco de jardim ao lado da minha irmã Célia... O roupeiro continua com os mesmos autocolantes colados nas portas: os "Tou" do Bollycao, os fantasmas que brilham no escuro que saíam nas batatas fritas, logótipos de cervejas e até autocolantes das campanhas pela Associação de Estudantes. E quando se abre uma das portas, ainda resiste colado a fita-cola um poster da Selecção Nacional do Euro de 96.

Por sua vez no roupeiro, em vez de roupas, estão encaixotados muitas das minhas bugigangas antigas em práticas caixas transparentes empilháveis que eu comprei no IKEA para arrumar tudo. As minhas cadernetas de cromos, os meus livros de banda desenhada, algumas capas de cartolina das aulas de Educação Visual que no final do ano lectivo vinham carregadas de assinaturas e dedicatórias do resto da turma, as minhas cassetes e alguns CD mais antigos, cadernos com desenhos e escritos meus. Lembras-te daqueles dossiers com um gelado Perna De Pau a saltar para uma piscina? Tive dois desses que agora contêm os meus boletins de notas ao longo dos vários anos lectivos. No outro dia, descobri dentro de uma das capas de cartolina uma folha A5 onde eu escrevi: Andreia, queres namorar comigo? E três quadrados para cada uma das hipóteses de resposta: Sim / Não / Vou Pensar. A cruzinha estava no Vou Pensar, mas a reflexão da Andreia pendeu para o Não. (A parvalhona!) Por acaso, nem sei por onde anda agora a Andreia, não vejo desde o 6.º ano. Gosto de imaginar que continua loirinha e com ar de boneca Candy-Candy, mas algo me diz que se a visse de novo, ia ficar bem desiludido.

E como não podia deixar de ser, duas caixas estão cheias de brinquedos, vários brinquedos: bonecos da Playmobil e figuras de PVC sobreviventes a anos de brincadeiras e excessos, carrinhos miniatura, sacos de berlindes, um sem-fim de baralhos de cartas, uma caixa de dominós, um jogo do Sabichão com a famosa vareta pontiaguda e aguçada, um Jogo Do Ganso (não como aquele que dava na televisão, era um jogo de tabuleiro onde a temida casa da morte era ilustrada com um ganso atropelado e moribundo), a minha Sega MegaDrive e muito mais.

Quem ocupa o quarto agora é o Martim, quando vai para casa dos avós depois da creche. Muitas sestas já dormiu ele na minha cama. E de vez em quando pega nos meus bonecos de PVC e põe-se a inventar brincadeiras ou então faz deslizar os carrinhos pelo chão do quarto provocando despistes e derrapagens mais espectaculares que o Grande Prémio de São Marino em Imola. Quando vou a casa dos meus pais e está lá o Martim, ele pede-me sempre para lhe mostrar as minhas cadernetas de cromos e os meus livros. Por vezes mostro-lhe fotos antigas dos meus tempos de escola e até já passámos um sábado a jogar na MegaDrive. Com quatro anos, ele tem quase a mesma destreza que eu tinha com catorze anos. Às vezes parece que os putos de agora já nascem programados para mexerem logo em computadores e máquinas... Acho que é por isso que ele parece tão interessado nas minhas relíquias, para ele o meu quarto é autêntico museu histórico. Ele deve pensar que quando eu era criança o mundo devia andar a 10 à hora (e se calhar andava mesmo)!    

Dos meus livros de Banda Desenhada, ele gosta sobretudo dos da Turma da Mônica. Sobretudo quando eu começo a dramatizar os diálogos escritos nos balões. Ele adora quando eu falo como o Cebolinha e a minha irmã já se queixou que por causa disso, ele passou uma fase de andar a trocar os erres pelos eles e a insistir à viva força que o tratassem por "Maltim".
E esperto como todos os cachopos, ele já me ouviu a falar de ti. Nas minhas conversas com a Célia ou com os meus pais, já apanhou uma Mónica aqui, uma Mónica acolá. Resultado: vai de pegar numa capa de uma das revistas, apontar para a capa e declarar que a Mônica era a minha namorada.

- Minha namorada? Porquê? - repliquei.
- Porque a tua namorada chama-se Mónica.
- Para já esta é Mônica com chapelinho no O, a outra é Mónica com risquinho no O. E não é bem minha namorada.
- Mas tu não gostas dela?
- Gosto.
- Então porque não namoras com ela?

Que mais podia eu dizer? "Eu e a Mónica ainda não definimos bem se somos namorados ou não. Encontramo-nos várias vezes, gostamos de estar um com ou o outro, mas cada um vive a sua vida. Estamos a viver no presente, a aproveitar cada momento juntos, sem pensar no futuro." Mas optei por uma reposta mais simplista:
- Porque ela vai muitas vezes para longe trabalhar e para namorar é preciso estar sempre perto.
Não lhe ia falar ainda em relações de longa distância, e a resposta pareceu ser suficiente para ele.
- Além do mais, a Mónica não é como esta.
- É mais bonita?
- Muito mais. Sabes, eu gosto de pensar que esta Mônica cresceu e deixou de ser baixinha, ao crescer ficou mais delgadinha e deixou de ser gorducha e as dentolas caíram e passou a ter uns dentes bonitos. E tornou-se  uma menina muito bonita.
- Como a tua Mónica.
- Sim.  

Não há como os miúdos para simplificarem o que é complicado. Pode ter ficado convencido que tu e eu não namoramos a sério, mas para ele, tu és "a minha Mónica". E a conversa pôs-me a pensar como é que de repente passamos de uma fase em que ou gosta-se ou não se gosta, ou namora-se ou não se namora (Sim / Não / Vou Pensar) para as coisas tornarem-se tão indefinidas. Ainda bem que ainda falta muito tempo para o Martim perceber que as coisas não são assim tão simples. Mas quando ele crescer, ele também vai perceber que há sentimentos que não são para ser definidos, são para serem sentidos.

Como sempre, bons voos para ti.

O teu Salvador 

quinta-feira, 15 de março de 2012

O Jogo dos Países

Portugal, Espanha, França, Itália, Bélgica, Luxemburgo...

Não te preocupes, não dei em maluco. Eu sei que pareço doido quando, sem querer, digo em voz alta nomes de países sem motivo aparente. Mas é apenas um jogo para exercitar a mente. Tento lembrar-me do maior número de países. Estranhamente, isso acalma-me bastante quando estou stressado ou nervoso, ou simplesmente quando não quero pensar naquilo que estou a pensar em determinado momento. Tu bem sabes que não é por pensar mais ou menos nos problemas que eles se resolvem. Quando eles têm resolução...

...Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé & Príncipe, Guiné Bissau, Guiné Equatorial... 

É muito raro conseguir-me lembrar de todos os países. Eles são tantos, não é verdade? 193 países pertencem à ONU. Nos Jogos Olímpicos, participam mais de duzentos.
Lembras-te quando havia duas Alemanhas, dois Vietnames, dois Iémens? Esses pares são agora um só, mas por cada país que se une, outros tantos partem-se em dois ou mais. Só do colapso da União Soviética e da Jugoslávia, surgiram uma data de novos países. Agora até existe um Sudão do Norte e um Sudão do Sul. E quem sabe se da próxima vez que virmos as notícias tenha entretanto surgido uma nova nação?

...Brasil, Argentina, Colômbia, Venezuela, Paraguai, Uruguai...

A sério, a mim, este jogo costuma deixar-me mais calmo. Por vezes, sinto a cabeça a andar à roda, com os pensamentos todos emaranhados. Começo lentamente a enumerar países e, sabe-se lá como, é como as peças do puzzle se encaixassem. Não sei se isso resulta com outras pessoas, mas comigo resulta.

...Estados Unidos, Canadá, México, El Salvador, Guatemala, Honduras...

Por exemplo, sabes daquelas vezes em que tu te deitas e vem-te tudo à cabeça? Mas mesmo tudo. Coisas boas, coisas más, coisas sérias, coisas parvas, coisas engraçadas, coisas deprimentes...tudo isso numa sucessão vertiginosa que quando dás por ti, tens o cérebro feito em papa e já nem distingues as baboseiras dos pensamentos concretos.

...Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Arménia, Azerbaijão, Geórgia...

Também faço este jogo quando dou comigo a pensar na Mariana. E quando penso nela, parece que nem aguento o peso que cai sobre o meu coração. Por isso, tento não pensar nela mais do que eu consigo aguentar. Até porque pensar nela não muda nada. Nem Deus pode mudar o passado. Por isso, penso em países...

...Irão, Iraque, Arábia Saudita, Qatar, Líbano, Jordânia...

O que é que uma pessoa há de fazer? A vida é mesmo assim, injusta como tudo. Onde há justiça no facto de uma criança de quatro anos, linda, saudável, maravilhosa, seja levada deste mundo por algo tão fulminante, quase estúpido? Onde há a justiça em toda a felicidade construída arduamente por uma família venha abaixo numa derrocada? Mas a vida é assim, o que se há de fazer?

...Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Quirguizistão, Turcomenistão, Afeganistão...

Creio que foi depois da morte da Mariana que eu comecei a fazer este jogo. Uma maneira de ocupar a mente. Tu por exemplo, dedicaste à jardinagem. Passavas horas a fio no quintal das traseiras, onde transformaste o baldio em belos canteiros de amores-perfeitos, sardinheiras, camélias...

...China, Japão, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura...

Porque depois de tudo, não há nada a fazer. E o tempo não muda nada, nem a dor, nem a saudade, mas a vida continua, continuamos a viver, um dia após o outro, dias bons, dias maus, dias péssimos, dias mais ou menos...

...África do Sul, Zâmbia, Zimbabwe, Lesoto, Suazilândia, Tanzânia...

E a vida continuou, os dias passaram, os anos também, já quase tantos como aqueles que a Mariana viveu. E mesmo com a dor dilacerante, o coração pesado, as lágrimas esgotadas, continuámos a viver. Não há nada que a faça voltar a este mundo, por isso, sofrer mais, sofrer menos, pouco importa. Nós ainda estamos vivos, não sabemos quando vai chegar a nossa hora e entretanto há trabalhos para fazer, contas para pagar, sítios para ir...

...Austrália, Nova Zelândia, Timor-Leste, Papua-Nova Guiné, Fiji, Samoa...

Entretanto nasceu o Afonso. Não veio ocupar o lugar da irmã, veio ocupar o lugar que é dele, o lugar que seria sempre dele. Era isto que a minha Mãe dizia, ela que teve quatro filhos e cada um tinha o seu lugar no coração. Ela dizia sempre assim, e com a sua razão.
Sim, dou graças a Deus pelo Afonso, tal como dei e ainda dou pela Mariana. Pelos quatro anos em que a tivemos junto de nós, e pelos anos em que tivermos aqui o Afonso, sejam quantos forem. Porque apesar de tudo a vida é uma dádiva, viver uma bênção, seja por muito ou pouco tempo.

...Índia, Paquistão, Sri Lanka, Bangladesh, Tailândia, Cambodja...

Gosto de imaginar que onde quer que a Mariana esteja, ela consegue ver todo o mundo, todos os países que eu enumero no meu jogo para aclarar a mente...Que ela viu montanhas, praias, desertos, florestas, cataratas e cidades, sobretudo daqueles países dos quais eu não sei nada senão o nome. Como quando ela arrastava o seu dedinho pelo mapa-mundo do meu atlas e dizia que andava a percorrer o mundo inteiro.

...Saint Kitts & Nevis, Santa Lucìa, São Vicente & Grenadinas, Antígua & Barbuda, Trinidad & Tobago...

Por isso e por tudo o mais, eu jogo este jogo de listar países. Não perco nem ganho. O importante é jogar, penso eu. Há alguns momentos em que parece que não me consigo lembrar de mais nenhum país e eis que de repente lembro-me de um país obscuro.

Tuvalu!

Gosto desses momentos. Lembram-me que tal como de um momento para o outro, as desgraças acontecem,  também surgem momentos felizes. A vida é mesmo assim. O que havemos nós de fazer, senão viver?

quarta-feira, 14 de março de 2012

Ao nível do solo

Ricardo

Nem acredito que já passaram três anos desde que tu me perguntaste: "Somos um casal?" ao que, para meu espanto, respondi que sim sem hesitar. Deixámos de fingir que éramos apenas dois amigos (que por acaso até se sentem mutuamente atraídos e dão uma esporádica queca) para passar a encarar que o que havia entre nós era algo bem mais sério. A Sara, minha amiga desde sempre, foi tua colega de curso e foi ela que nos apresentou. Ela ainda hoje nega que queria fazer um arranjinho entre nós, mas ela já me falava de ti desde os tempos do vosso curso, por isso ela não me convence que nunca lhe ocorreu armar-se em casamenteira.

Mas se era mesmo essa intenção, tenho que reconhecer que o timing dela foi o melhor possível. Havias de me detestar se me tivesses conhecido uns anos antes. Eu era um fútil do caraças: não só era uma fashion victim, como me deixava embeiçar por qualquer palminho de cara e de corpo. Por isso, andava a sempre a saltar de um relacionamento para outro, atrás de alguém cada vez mais bonito e pelintra que o anterior. Foi preciso ter andado à tareia com o mais pelintra deles todos para abrir os olhos. Dei comigo com uma auto-estima tão arrasada que achava que eu merecia este círculo de traições e que não era digno de algo melhor. A maca do hospital para onde fui parar foi melhor que um divã de psicólogo. Saí com a minha autoconfiança renovada, decidido a dar a volta por cima. Despachei logo o outro que ficou de nariz partido mas livre do fardo de um rosto perfeito.

Tal como o meu antigo eu não olharia duas vezes para ti. Não que sejas feio, longe disso, mas o teu ar geek chic não poderia atrair-me menos. Felizmente, quando te conheci, já conseguia apreciar outras qualidades que não um aspecto de fazer parar o trânsito. Por exemplo, descobri logo que eras um bom ouvinte. Era fácil falar contigo, mesmo de coisas que nunca tinha dito a ninguém. Parecias ouvir tudo atentamente, dos assuntos mais sérios às minhas maiores parvoíces. E ao contrário da maioria das pessoas que eu conheço, não fizeste nenhum juízo de valor, não denotei em ti nenhum olhar de reprovação ou condescendência. Poucos dias depois de nos conhecermos, já conhecias quase toda a minha vida amorosa, familiar ou profissional. E não me importava de partilhar coisas que sempre prezei em ter como apenas minhas. Isso já era um sinal de que eras alguém com quem eu queria partilhar uma vida.

Também vim a perceber que o teu charme estava sobretudo nessa tua combinação de inteligência, sensatez e compaixão. Nunca pensaria nessas qualidades como sensuais, mas resultou comigo. Agora acredito que a beleza interior pode ser bem mais sedutora que a exterior. Dei comigo a desejar-te e a querer seduzir-te. Cedeste, fazendo de desprendido e descomplexado, convencido que isto era uma comichão que tínhamos de coçar. Concordámos que era só a tusa a falar mais alto e nada mais. Mas havia bem mais...

Porém, foi difícil admitir. Eu achava que tu eras só uma peça da minha evolução, qual Pokemón, de ser superficial e atadinho para algo mais substancial. Tu ainda estavas apegado à memória desse austríaco do Erasmus e achavas que mais ninguém estaria minimamente à altura dele e do que viveste com ele. Em boa hora, recorreste ao bom-senso que te acompanha em quase tudo e deixaste-o lá no alto do pedestal e decidiste procurar alguém ao nível do solo. E felizmente decidiste que esse alguém era eu.
Por isso, quando perguntaste se éramos um casal e eu disse que sim, também deixei de metáforas. Percebi que valias a pena e decidi que ia dar tudo para te merecer. Espero que tenho sido bem-sucedido.

Quanto a mim, já não consigo imaginar a amar ou a desejar mais ninguém. E já me sinto parte da tua família que soube bem acolher-me. Eu sou filho único e nunca me importei com isso, mas agora quem me dera ter tido uma irmã mais nova como a Mónica. Bem me dizias tu que no dia em que eu a conhecesse, iríamos ficar loucos um pelo outro. Até fazes-te de enciumado e dizes-lhe por vezes: "Só queres é o Filipe, eu é que sou teu irmão!". Também simpatizei logo com o Nelson, até com o teu pai. Sei que para ele foi um bocado mais difícil de se adaptar à ideia de tu teres um namorado. Coitado, estava tão embaraçado quando foi connosco para o Algarve, e eu também. Ainda bem que tudo correu pelo melhor.
Também tenho tanta pena de mal ter conhecido a tua mãe com um mínimo de saúde, porque poucos meses depois de a teres-me apresentado, começou a agonia da doença que a levou tão depressa e tão cedo deste mundo. Mas deu para perceber que tinhas saído a ela, que tu eras um verdadeiro reflexo da pessoa admirável que ela era e o quanto te custou vê-la a lutar ingloriamente contra a doença. Por isso, estive sempre ao teu lado, a apoiar-te, com uma força que eu achava que não tinha. Queria ser aquele com quem podias contar. E é o que continuo a fazer. Mas sei que tudo o que eu fizer não se compara ao que tu me deste, ao que fizeste por mim ao longo de mais de três anos.

Bem sei que algumas coisas não precisam de serem ditas para terem significado. Mas eu gosto de dizê-las. Obrigado por tudo. Sobretudo por me fazeres querer partilhar tudo.

Com amor,

Filipe  

terça-feira, 6 de março de 2012

Mudar

Quando deixaste cair a tua máscara e vi pela primeira vez o teu lado negro, ainda acreditei que podias mudar.

Quando reparei nos teus sinais subtis de repreensão e controlo que no fundo sempre estiveram lá, ainda acreditei que podias mudar.

Quando passaste abertamente aos insultos, e qualquer motivo servia para isso, ainda acreditei que podias mudar.

Quando minaste a minha autoconfiança e dizias que sem ti, eu não era nem nunca seria nada, ainda acreditei que podias mudar.

Quando eu não podia fazer nada, entrar ou sair, sem que tu pudesses controlar-me, ainda acreditei podias mudar.

Quando pensavas que todos os homens que conhecia eram meus amantes e julgavas que me oferecia descaradamente a cada homem que cruzasse o meu caminho, ainda acreditei que podias mudar.

Quando passaste da violência verbal à violência física, embora com o cuidado de não deixar marcas, ainda acreditei que podias mudar.

Quando a tua loucura destruiu-te o pouco discernimento que tinhas e já nem te preocupavas se deixavas marcas ou não, tendo eu ido parar ao hospital mais morta que viva, percebi que por muito que acreditasse, não ias mudar.

Agora estou aqui nesta cama de hospital, e não há volta a dar. Podes ameaçar-me, podes chorar baba e ranho, podes jurar pela enésima que vais mudar. Eu até posso acreditar em ti. Mas eu mudei.

domingo, 4 de março de 2012

Uma camada de verniz

No tempo dos nossos pais, era bem mais fácil. Era quase como passar uma camada de verniz sobre a madeira riscada. Pintar um quadro de harmonia da família exemplar, o casal apaixonado, os filhos sorridentes. Camuflar os dramas, os gritos, os espaços em branco, mesmo quando eram as evidências mais evidentes. No tempo dos nossos pais, e dos pais deles, era mais fácil olhar para as pinturas, mesmo as mais abstractas, do que encarar as fendas dos espelhos. Foi só quando sopraram outros ventos que os espelhos partidos tornaram-se impossíveis de ignorar. Como se de repente a luz que incidia sobre todos fosse mais forte e não houvesse canto obscuro que resistisse.

Pergunto-me tanta vez se eu não estou a fazer o mesmo que os meus pais. E a Carla também se questiona. Se andamos a brincar às famílias felizes. Se o nosso universo edificado sobre um sonho de vida em comum e criar uma família foi bem alicerçado. Brincadeiras com as filhas, torradas com geleia, passeios no jardim, refeições no micro-ondas, sexo semi-espontâneo, séries do Canal Panda, AXN e Fox Life, conversas de trabalho, tintura de iodo e pensos rápidos, gincanas de hipermercado, ferros de engomar a deslizar pelas camisas, Domingos de Verão na praia e tantos outros fotogramas deste filme. A vida é isto mesmo ou é tudo uma estratégia da nossa empresa conjugal? Quanto mais nós queremos acreditar que sim, que semeámos os nossos projectos a dois com cuidado, amor e dedicação e agora colhemos uma sucessão relativamente pacífica e sossegada de cenas banais mas não sem o seu travo tragicómico, mais a dúvida se instala. 

Se ao menos eu e ela não tivéssemos passado pelo mesmo processo de olhar nos espelhos, para ver a nossa ideia dos nossos pais, como um casal feliz e apaixonado, rasurada pelas fendas. Mesmo sendo fácil de perceber porque é que eles preferiram alimentar essa ilusão - os tempos eram outros, reinava a lei da vergonha e do verniz - teríamos preferido a sinceridade, mesmo com risco de encadeamento. Poderíamos arrumar as histórias de amor nas páginas dos livros e escrever outra história, talvez menos feliz mas mais verdadeira. Mas foi assim que escrevemos a nossa história, realizámos uma comédia romântica, adicionando uma pitada de sexo hardcore, esse ingrediente que não era tão essencial nas gerações anteriores mas que na nossa já é tão imprescindível como o sal nas batatas fritas. Poderá a felicidade existir sem verniz?

Ou será a realidade como a guerra sem quartel a que o meu irmão e a Diana se entregaram? Ora morrendo das balas perdidas e dos golpes das espadas quando estão juntos, ou de falta do ar que o outro respira quando estão longe. A Carla e eu gostamos de olhar de alto, abanar a cabeça e lamentar que eles não saibam viver um com o outro sem se digladiarem. Mas secretamente invejamos o ardor dos seus tumultos e das rendições na cama, a vertigem de viver sempre de punho cerrado e de ouvidos em alerta, os sangue a pulsar nas veias, cada respirar profundo e doloroso cheio de vida. Como isso tudo parece tão vivo e arrebatador e faz parecer a nossa vida tão enfadonha e medíocre, quase catatónica! 

Mas mesmo que quiséssemos e tentássemos, nunca seríamos como eles. Para feridas e cicatrizes, bem basta aquelas que já temos e as que não poderemos evitar. Vistas bem as coisas, não há mal em querer a felicidade, amor e paz de espírito, mesmo sob a forma de ilusão analgésica. Sempre é melhor do que sentir-se em dor constante. Tudo o que eu posso dizer que, pelo menos por agora, quando eu puxo a Carla para a beijar diante das nossas filhas, é para mais do que mostrar a elas o quadro de um casal feliz. Enquanto assim for, não é preciso aplicar nenhum verniz.