domingo, 4 de março de 2012

Uma camada de verniz

No tempo dos nossos pais, era bem mais fácil. Era quase como passar uma camada de verniz sobre a madeira riscada. Pintar um quadro de harmonia da família exemplar, o casal apaixonado, os filhos sorridentes. Camuflar os dramas, os gritos, os espaços em branco, mesmo quando eram as evidências mais evidentes. No tempo dos nossos pais, e dos pais deles, era mais fácil olhar para as pinturas, mesmo as mais abstractas, do que encarar as fendas dos espelhos. Foi só quando sopraram outros ventos que os espelhos partidos tornaram-se impossíveis de ignorar. Como se de repente a luz que incidia sobre todos fosse mais forte e não houvesse canto obscuro que resistisse.

Pergunto-me tanta vez se eu não estou a fazer o mesmo que os meus pais. E a Carla também se questiona. Se andamos a brincar às famílias felizes. Se o nosso universo edificado sobre um sonho de vida em comum e criar uma família foi bem alicerçado. Brincadeiras com as filhas, torradas com geleia, passeios no jardim, refeições no micro-ondas, sexo semi-espontâneo, séries do Canal Panda, AXN e Fox Life, conversas de trabalho, tintura de iodo e pensos rápidos, gincanas de hipermercado, ferros de engomar a deslizar pelas camisas, Domingos de Verão na praia e tantos outros fotogramas deste filme. A vida é isto mesmo ou é tudo uma estratégia da nossa empresa conjugal? Quanto mais nós queremos acreditar que sim, que semeámos os nossos projectos a dois com cuidado, amor e dedicação e agora colhemos uma sucessão relativamente pacífica e sossegada de cenas banais mas não sem o seu travo tragicómico, mais a dúvida se instala. 

Se ao menos eu e ela não tivéssemos passado pelo mesmo processo de olhar nos espelhos, para ver a nossa ideia dos nossos pais, como um casal feliz e apaixonado, rasurada pelas fendas. Mesmo sendo fácil de perceber porque é que eles preferiram alimentar essa ilusão - os tempos eram outros, reinava a lei da vergonha e do verniz - teríamos preferido a sinceridade, mesmo com risco de encadeamento. Poderíamos arrumar as histórias de amor nas páginas dos livros e escrever outra história, talvez menos feliz mas mais verdadeira. Mas foi assim que escrevemos a nossa história, realizámos uma comédia romântica, adicionando uma pitada de sexo hardcore, esse ingrediente que não era tão essencial nas gerações anteriores mas que na nossa já é tão imprescindível como o sal nas batatas fritas. Poderá a felicidade existir sem verniz?

Ou será a realidade como a guerra sem quartel a que o meu irmão e a Diana se entregaram? Ora morrendo das balas perdidas e dos golpes das espadas quando estão juntos, ou de falta do ar que o outro respira quando estão longe. A Carla e eu gostamos de olhar de alto, abanar a cabeça e lamentar que eles não saibam viver um com o outro sem se digladiarem. Mas secretamente invejamos o ardor dos seus tumultos e das rendições na cama, a vertigem de viver sempre de punho cerrado e de ouvidos em alerta, os sangue a pulsar nas veias, cada respirar profundo e doloroso cheio de vida. Como isso tudo parece tão vivo e arrebatador e faz parecer a nossa vida tão enfadonha e medíocre, quase catatónica! 

Mas mesmo que quiséssemos e tentássemos, nunca seríamos como eles. Para feridas e cicatrizes, bem basta aquelas que já temos e as que não poderemos evitar. Vistas bem as coisas, não há mal em querer a felicidade, amor e paz de espírito, mesmo sob a forma de ilusão analgésica. Sempre é melhor do que sentir-se em dor constante. Tudo o que eu posso dizer que, pelo menos por agora, quando eu puxo a Carla para a beijar diante das nossas filhas, é para mais do que mostrar a elas o quadro de um casal feliz. Enquanto assim for, não é preciso aplicar nenhum verniz. 

Sem comentários: