quarta-feira, 14 de março de 2012

Ao nível do solo

Ricardo

Nem acredito que já passaram três anos desde que tu me perguntaste: "Somos um casal?" ao que, para meu espanto, respondi que sim sem hesitar. Deixámos de fingir que éramos apenas dois amigos (que por acaso até se sentem mutuamente atraídos e dão uma esporádica queca) para passar a encarar que o que havia entre nós era algo bem mais sério. A Sara, minha amiga desde sempre, foi tua colega de curso e foi ela que nos apresentou. Ela ainda hoje nega que queria fazer um arranjinho entre nós, mas ela já me falava de ti desde os tempos do vosso curso, por isso ela não me convence que nunca lhe ocorreu armar-se em casamenteira.

Mas se era mesmo essa intenção, tenho que reconhecer que o timing dela foi o melhor possível. Havias de me detestar se me tivesses conhecido uns anos antes. Eu era um fútil do caraças: não só era uma fashion victim, como me deixava embeiçar por qualquer palminho de cara e de corpo. Por isso, andava a sempre a saltar de um relacionamento para outro, atrás de alguém cada vez mais bonito e pelintra que o anterior. Foi preciso ter andado à tareia com o mais pelintra deles todos para abrir os olhos. Dei comigo com uma auto-estima tão arrasada que achava que eu merecia este círculo de traições e que não era digno de algo melhor. A maca do hospital para onde fui parar foi melhor que um divã de psicólogo. Saí com a minha autoconfiança renovada, decidido a dar a volta por cima. Despachei logo o outro que ficou de nariz partido mas livre do fardo de um rosto perfeito.

Tal como o meu antigo eu não olharia duas vezes para ti. Não que sejas feio, longe disso, mas o teu ar geek chic não poderia atrair-me menos. Felizmente, quando te conheci, já conseguia apreciar outras qualidades que não um aspecto de fazer parar o trânsito. Por exemplo, descobri logo que eras um bom ouvinte. Era fácil falar contigo, mesmo de coisas que nunca tinha dito a ninguém. Parecias ouvir tudo atentamente, dos assuntos mais sérios às minhas maiores parvoíces. E ao contrário da maioria das pessoas que eu conheço, não fizeste nenhum juízo de valor, não denotei em ti nenhum olhar de reprovação ou condescendência. Poucos dias depois de nos conhecermos, já conhecias quase toda a minha vida amorosa, familiar ou profissional. E não me importava de partilhar coisas que sempre prezei em ter como apenas minhas. Isso já era um sinal de que eras alguém com quem eu queria partilhar uma vida.

Também vim a perceber que o teu charme estava sobretudo nessa tua combinação de inteligência, sensatez e compaixão. Nunca pensaria nessas qualidades como sensuais, mas resultou comigo. Agora acredito que a beleza interior pode ser bem mais sedutora que a exterior. Dei comigo a desejar-te e a querer seduzir-te. Cedeste, fazendo de desprendido e descomplexado, convencido que isto era uma comichão que tínhamos de coçar. Concordámos que era só a tusa a falar mais alto e nada mais. Mas havia bem mais...

Porém, foi difícil admitir. Eu achava que tu eras só uma peça da minha evolução, qual Pokemón, de ser superficial e atadinho para algo mais substancial. Tu ainda estavas apegado à memória desse austríaco do Erasmus e achavas que mais ninguém estaria minimamente à altura dele e do que viveste com ele. Em boa hora, recorreste ao bom-senso que te acompanha em quase tudo e deixaste-o lá no alto do pedestal e decidiste procurar alguém ao nível do solo. E felizmente decidiste que esse alguém era eu.
Por isso, quando perguntaste se éramos um casal e eu disse que sim, também deixei de metáforas. Percebi que valias a pena e decidi que ia dar tudo para te merecer. Espero que tenho sido bem-sucedido.

Quanto a mim, já não consigo imaginar a amar ou a desejar mais ninguém. E já me sinto parte da tua família que soube bem acolher-me. Eu sou filho único e nunca me importei com isso, mas agora quem me dera ter tido uma irmã mais nova como a Mónica. Bem me dizias tu que no dia em que eu a conhecesse, iríamos ficar loucos um pelo outro. Até fazes-te de enciumado e dizes-lhe por vezes: "Só queres é o Filipe, eu é que sou teu irmão!". Também simpatizei logo com o Nelson, até com o teu pai. Sei que para ele foi um bocado mais difícil de se adaptar à ideia de tu teres um namorado. Coitado, estava tão embaraçado quando foi connosco para o Algarve, e eu também. Ainda bem que tudo correu pelo melhor.
Também tenho tanta pena de mal ter conhecido a tua mãe com um mínimo de saúde, porque poucos meses depois de a teres-me apresentado, começou a agonia da doença que a levou tão depressa e tão cedo deste mundo. Mas deu para perceber que tinhas saído a ela, que tu eras um verdadeiro reflexo da pessoa admirável que ela era e o quanto te custou vê-la a lutar ingloriamente contra a doença. Por isso, estive sempre ao teu lado, a apoiar-te, com uma força que eu achava que não tinha. Queria ser aquele com quem podias contar. E é o que continuo a fazer. Mas sei que tudo o que eu fizer não se compara ao que tu me deste, ao que fizeste por mim ao longo de mais de três anos.

Bem sei que algumas coisas não precisam de serem ditas para terem significado. Mas eu gosto de dizê-las. Obrigado por tudo. Sobretudo por me fazeres querer partilhar tudo.

Com amor,

Filipe  

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