segunda-feira, 20 de maio de 2013

Futuro Inadiável

- Ainda estás em pé?
- Sim, não tinha sono, fiquei a ver televisão. Voltaste a trabalhar até tarde?
- Fiquei. Só quero ir dormir.
- Tudo bem. Eu também vou.

Agora faz todo o sentido. Afinal notava-se tão bem, a cara dela não enganava, como a amiga de ambos afirmou. Ele é que nunca tinha reparado, alienado pela sequencial rotina quotidiana que se comprazia em perpetuar, partindo do princípio que ela também fazia o mesmo. Há quanto tempo teria ela deixado de afinar pelo mesmo diapasão e começado a marchar por outros compassos? Há quanto tempo é que ela tem outro homem na sua vida? E porque é que ao descobrir isso, ele não consegue sentir raiva ou despeito, apenas a desilusão de quem viu as suas ilusões caídas por terra. E talvez a tristeza de algo que terminou. Ou de não mais ser ele o homem que lhe faz povoar aquelas sensações. Será que alguma vez o foi?

- A Ana está toda esplendorosa e tudo graças a ti. Nem sei como estando vocês casados há tanto tempo, conseguem ainda ter tanta paixão na vossa relação?
- Achas?
- A cara dela não engana ninguém. É a cara de uma mulher que tem paixão e bom sexo na sua vida.

Ele matutou durante longo tempo as palavras da amiga Bárbara, ditas durante um jantar entre casais amigos na casa dela. Paixão? Bom sexo? Mas se eles mal tinham qualquer contacto íntimo há vários meses, senão há mais de um ano...Foi então que pela primeira vez em sabe-se lá quanto tempo, ele olhou para ela com olhos de ver e descobriu que algo tinha mudado nela. Não sabia descrever o que seria mas era bastante nítido no rosto dela. Mesmo comedida e discreta, como sempre, havia algo diferente no olhar, no sorriso, até a pele parecia mais resplandecente e fresca.
À medida que ia reflectindo, ia descobrindo os sinais que ele tinha ignorado e que eram tão óbvios. Há coisa de três meses, ela chegava frequentemente mais tarde a casa, por vezes depois da hora do jantar, desculpando-se vagamente com o seu trabalho e encontros com amigas. Era habitual ela também chegar algo despenteada, com a roupa desalinhada. Até reparou em algumas marcas nos braços, nas costas e nas coxas, como se alguém a tivesse agarrado com força. Afinal, Bárbara tinha razão. A cara dela não enganava ninguém. Aliás ela sempre fora tão transparente. Bastaria ter reparado um pouco mais atentamente. 

Como sempre, os dois deitam-se na cama de costas voltadas um para o outro, colocando uma distância em que os movimentos de um não importunem o outro. Durante tempo, ele sentiu segurança e até conforto nisso. Quem é que precisa de dormir sempre abraçado a alguém? Era frequente que sempre que um se atrevesse a fazer alguma meiguice, o outro repelisse. Estou de rastos, não me apetece. Já era assim há tanto tempo. Milhentas perguntas lhe percorrem o pensamento. Quem é esse outro homem, o que fazem eles os dois, onde, quando. E porquê esse outro e não o homem com quem ela casou. 

Talvez porque, mais do que ele gostaria de admitir, sempre foram um para o outro mais uns sócios de uma empresa do que amantes e amados. Eram ambos pessoas, racionais, lógicas, pouco dadas a sentimentos de arrebatamento e gestos vistosos. Apreciavam a discrição, as rotinas bem delineadas, as sopas e o descanso. Havia amizade, entendimento, afecto, até mesmo amor fraterno e mais não era preciso. Que diabo, eles até eram atraentes aos olhos de um e de outro, e o sexo entre ambos podia não ser estonteante mas era bem satisfatório, pelo menos ao princípio. Não se costuma dizer que a paixão é uma sensação demasiado fugaz e volátil para nela construir algo sólido? Só que na verdade sempre faltou algo indizível que distinguisse o seu casamento de uma empresa de actividades conjugais. Mas continuaram a insistir, porque eram assim que eles eram, porque detestavam desistir dos seus planos, porque achavam natural que assim fosse. E depois, por preguiça, por comodismo, por medo do imprevisível da mudança. Até que ela encontrou um novo mundo de sensações nos braços de outro homem e ele ficou rendido à evidência de que já não haveria volta a dar.

Sentado na cama, ele observa-a, adormecida, talvez encontrando em sonhos aquele a quem se entrega como ela nunca se entregou a ele. Matutando, mais um pouco, descobre que houve alturas em que ela o encarou, quase desafiante, a pedir que ele reparasse na mudança do seu rosto. A pedir talvez mesmo que a sua infidelidade fosse descoberta, que ele ficasse furioso, que fosse prestar contas ao outro, que ele se importasse. E agora que ele sabe, não se capaz de nada mais do que ficar imóvel, encadeado com o brilho da revelação, paralisado pelo medo de um futuro inadiável que ele preferiria ainda assim que fosse antes apagado e enfadonho do que incerto e solitário. Mas então, quase sem reconhecer a sua voz, ele acorda-a sacudindo-lhe um ombro e diz:

- Ana?
- O que foi?
- Desculpa não ter reparado antes.