sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Dois Pais Natais

Sabes, Mãe, eu sei que o Pai Natal são vocês, os pais. No fundo sempre desconfiei, achei uma história mal contada mas agora já cheguei a uma conclusão. Aquele velhote de barbas brancas e roupa vermelha que anda num trenó puxado por renas é apenas uma personagem de desenhos animados, tal como o Rato Mickey ou a Abelha Maia. É uma personagem engraçada e é giro imaginar ele a dar a volta ao mundo, descer pelas chaminés com um saco cheio de presentes e rir-se numa gargalhada dengosa. Mas eu sempre soube que não passa de uma personagem. Só que tal como imagino que sou companheiro de aventuras dos meus heróis bonecos animados, também gosto de ver passar na minha imaginação essa cena de desenhos animados. 

Eu sei que se na noite de Natal, houver debaixo da árvore algum dos brinquedos que me fazem salivar de cobiça sempre que vejo os anúncios na televisão, sei que foram vocês que foram lá a loja comprá-lo, pediram para embrulhar no papel mais bonito e colocar uma bela fita dourada. Tal como foram vocês que trouxeram para a nossa mesa tantas coisas boas, dos chocolates em forma de Pai Natal (como aqueles do anúncio da menina loirinha e do avô comilão) aos coscorões generosamente povilhadas de açúcar e canela.

Também sei que assim que entra o mês de Dezembro, tu e o pai andam sempre numa canseira, de um lado para o outro, num esforço para fazer esticar o dinheiro, que parece ser sempre tão pouco para tanta coisa. Já vos vi muitas vezes a chegar a casa com ar estafado, que tentam esconder atrás de um sorriso assim que vêem. Tudo para que quando chegar o dia 25, ver o meu rosto iluminado de alegria, como as luzes que iluminam das ruas e passarmos mais um feliz Natal em família. Para mim, por agora, a minha vida é ser criança, ter duas semanas de férias da escola, passar tardes a ver televisão e a brincar com os amigos, a arregalar os olhos diante das montras das lojas, sem perder muito tempo a pensar no custo das coisas e nos deveres e trabalheiras do mundo dos adultos.   

Sim, é verdade. No Natal, adoro receber presentes e imaginar os belos brinquedos escondidos dentro daqueles papéis de embrulho coloridos, gosto muito de pendurar Pais Natais de chocolate na árvore e de encher a barriga de bolos e bombons. Mas o que eu gosto mesmo do Natal, é viver esta época feliz com vocês do meu lado, com muitos ou poucos presentes e doces. Por isso, no próximo Natal, quando tu e o pai estiverem apanhados na canseira de Dezembro, queria que vocês soubessem que não há melhor presente que vocês estarem aqui comigo, a cuidarem de mim, a deixarem-me viver a alegria de ser criança. Porque, infelizmente, também sei que existem muitas crianças que nem sequer têm isso. 

Por isso, deixo o velhote gorducho de barbas brancas para a minha imaginação e para o ecrã da televisão. Quem precisa de um desenho animado, quando se tem aqui dois Pais Natais junto de mim, dispostos a tudo por um sorriso meu? E algo me diz, que quando for adulto, por muitos cansaços e chatices que tenha de passar, também farei com gosto a vez de Pai Natal para uma criança.


    


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Pouso e Repouso

A porta está aberta. Entra sem fazer barulho,
deslizando a tua sombra pela meia-luz.
Os meus braços já te acolhem,
os meus lábios já te esperam,
podes respirar fundo.

Soubeste esperar-me,
desejar-me
e sentir-me.
Calei os medos e os fantasmas.

As palavras bonitas são preciosas,
não as desperdices.
Já ouvi tantas dessas palavras
serem atiradas pelas janela fora
como papel de Monopólio
amarrotado na arrecadação.

Diz-me apenas uma mão mal cheia delas
que eu te direi outras tantas,
podem ser poucas
mas vais ver que te vão valer de muito.
Guarda-as numa arca,
para abrires e revires
quando sentires que já não te digo nada. 

Senta-te no sofá,
pousa a cabeça no ombro.
Deixa-me agora ser pouso e repouso
das desventuras dos sentimentos.
Sim, dizes coisas que não sentes
tal como escondo as marés de ternura
que eu digo não ter.

Ainda há pouco, a porta estava trancada
mas bateste de mansinho,
e eu arrumei as estantes
puxei os lustros
antes de rodar a fechadura.

Podes ficar quanto tempo quiseres
voltar quando te apetecer
para ti não vai haver trancas na porta
mesmo numa casa arrombada
é triste viver só.

Palavras bonitas são preciosas,
não vou desperdiçá-las em mim,
dá-me algumas para a troca.
Eu posso não dizer-te muita coisa,
mas quando digo
é para dizer mais do que falo.

Podes respirar fundo.
Chegaste aonde os meus passos te levaram.
Desliza a tua sombra  pela meia-luz.



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Labirinto do Luto

Mano:

Quando te candidataste ao teu emprego na Noruega, lembro-me de que apesar de estares muito entusiasmado com a ideia, tinhas um ar algo pessimista. Chegaste a dizer que tinhas um pressentimento de que algo terrível estava para acontecer. Logo tu que és um homem das ciências e que nunca foste de pressentimentos antes. Mas fosse como fosse, era uma sensação forte demais para ser ignorada. E a verdade é que pouco tempo depois, a nossa Mãe seria levada pela doença que a consumiu bem mais depressa do que qualquer um de nós poderia imaginar.  
O Filipe teve um pressentimento desses nas nossas férias na Turquia. Estávamos no meio da beleza arrebatadora de Pamukkale quando reparei que ele estava a chorar. Foi então que ele me disse: "Normalmente quando estou assim tão feliz, é porque algo de mau vai acontecer." Claro que eu tentei animá-lo, disse-lhe para não ser parvo e aproveitar o momento esplendoroso que vivíamos naquele lugar e ao longo da nossa viagem há tanto tempo ansiada. Mas a verdade é que o pressentimento dele estava certo.  

A minha profissão e a minha maneira de ser levaram a que eu adoptasse uma postura forte e compassiva desde a hora em que o Filipe recebeu a notícia da morte do pai dele até ao regresso do funeral. Mas como se eu não puder ser profano e pouco profissional contigo, não posso ser com mais ninguém aqui vai: fica mais uma vez provado que esta vida é uma merda, em que num momento uma pessoa está viva e noutra já não está.
Eu mal conhecia o pai dele, se trocámos uma dúzia de palavras já foi muito, mas isto tudo acabou por me afectar mais do que eu pensava. Não só pelas memórias do que passámos com a nossa mãe, mas também por ter sido algo tão repentino e burlesco: ele tinha acabado de lavar o carro, abaixou-se para pegar no balde e de repente cai para o chão, como um robô que ficou sem pilhas. E se comigo, foi o que foi, imagina o Filipe logo agora que estavam a dar-se finalmente bem e a tentar recuperar o tempo perdido. Depois de ter crescido sem pai, ele tinha procurado ao longo da vida uma figura paterna: na mãe, no tio, no nosso Pai e finalmente começava a finalmente a encontrá-la no verdadeiro pai. Com os ressentimentos e os arrependimentos arrumados, estavam lentamente a criar uma relação de pai e filho, que agora terminou abruptamente. Ele vê-se de novo órfão de uma parte de si que nunca conseguiu verdadeiramente compreender. Como é óbvio, dou comigo a comungar da sua dor, tal como ele esteve sempre presente quando a Mãe morreu.

Eu digo ao Filipe para chorar antes pelo bom que conseguiram alcançar, por terem tido a oportunidade de crescer e reaprender a relação e olharem um para o outro sem ressentimentos do que pelo que ele perdeu e nunca reparar e aquilo que podia ter sido. Mas a verdade é que também tenho muita pena de que este laço tenha sido rasgado assim tão bruscamente quando demorou tantos anos a ser remendado. E não estava nada à espera de reviver esse labirinto do luto tão cedo, só nós é que sabemos o quanto custou da outra vez. A vida é mesmo uma merda, mas tudo o que se pode fazer é continuar a viver.
O Filipe vai caminhando pelo labirinto, sem saber bem por onde seguir rumo, com dias maus onde a dor da perda é dilacerante demais para manter o mínimo rasto de serenidade e com dias mais positivos onde o sofrimento é relativamente suportável. E eu sigo ao lado o dele, tentando guiá-lo tal como eu, tu, o Pai e a Mónica nos guiámos uns aos outros em cada passo rumo a uma saída que parecia estar sempre longe demais.
Ontem o Filipe parecia estar num dia mais ou menos calmo quando o encontrei a chorar no sofá. Quando me sentei ao lado dele, ele pegou-me na mão e disse que queria casar comigo. Fui-lhe amparando os golpes de insistência, dizendo que estava a ser motivado pela emoção, que estava de cabeça quente, que nós já temos um compromisso sério e não é um papel passado que o torna mais válido e lá consegui demovê-lo.

Mas só aqui para nós, não foi nada que eu próprio não me tivesse ocorrido. Pode ser verdade que um papel passado não valida mais o nosso compromisso de partilharmos as nossas vidas, também é verdade que se cumprimos os mesmos deveres também devemos beneficiar dos mesmos direitos, já que no nosso país a legislação está felizmente mais avançada que a mentalidade. Mas sobretudo porque nunca sabemos o que nos espera a  cada curva do percurso e se algo nos acontecer a um de nós, o outro merece não ter de percorrer desamparado o sinuoso labirinto do luto.

Um abraço,

Ricardo         
  

domingo, 18 de novembro de 2012

Pearl Jam é trampa

Parabéns pelo nascimento do teu filho. Sim, apesar de tudo e mais alguma coisa, ser pai é a melhor coisa do mundo e ainda bem que finalmente podes experimentar essa sensação. Quero dizer-te que não foi tarde demais ter sido pai pela primeira vez aos quarenta anos, ainda hás-de ter certamente muito para viver e o que te faltar em energia durante o crescimento do teu filho, podes compensar com experiência de vida. Até porque hoje em dia, casar aos vinte e quatro anos e ser pai aos vinte e cinco, como eu, é considerado como ainda "muito cedo". Compreendo as tuas hesitações, mas conhecendo-te como eu te conheço, tenho a certeza que vais ser um óptimo pai, talvez até melhor que eu.
Agora, se eu te puder prevenir de alguma coisa, digo-te que por muito aberto, compreensivo, presente e razoável que tu julgues ser no teu exercício de paternidade, o mais provável é que o teu filho acabe por achar que és tudo menos isso. Olha a minha mais velha, a Bárbara.
No alto dos seus quinze anos, eu sou o pai mais careta que há. Para a minha filha, ter crescido num mundo sem internet e TV por cabo é o mesmo que ter crescido na Idade da Pedra e os Pearl Jam são tão arcaicos como os Pink Floyd. Para a minha filha, eu não faço ideia do que é actual e fixe e tudo o que eu lhe digo parece vindo de uma realidade virtual. Para a minha filha, sou um chato que está  sempre a dar-lhe sermões sobre os perigos da droga, do álcool e do sexo desprotegido porque eu acredito que ela é uma tótó que à mínima pressão, irá fumar ganza ou beber desalmadamente ou deitar-se com qualquer chico-esperto que lhe fizer falinhas mansas. Para a minha filha, as minhas objecções àquilo que ela veste são um atentado à sua individualidade e uma tentativa opressora de a formatar ao autómato acéfalo e obediente que eu alegadamente quero que ela seja. Para a minha filha, eu implico com ela apenas por inveja de eu já não ser jovem e despreocupado e não lhe deixo aproveitar o imenso tempo livre de que ela dispõe agora (bem basta mais tarde!). Para a minha filha, tudo o que ela faz nunca é suficientemente bom, nunca lhe dou elogios correspondentes aos esforços dela na escola, em casa, no voleibol e em tudo o mais. 
E na verdade, ela tem razão. Aos quinze anos, também eu era um adolescente respondão, insubordinado e incompreendido e tinha a certeza que o meu pai não fazia a mínima ideia do que eu estava a passar e só estava a ser um chato de primeira só porque sim. Mas o que sabia eu aos quinze anos? Não tinha nenhuma geração seguinte para poder comparar, não sabia ainda que os sermões martelados na minha cabeça contribuíram para que as minhas maluquices não resvalassem por caminhos pouco saudáveis, não fazia ideia que assim que te tornas adulto e entras no mercado de trabalho, não tens elogios pelos teus esforços, se é que tens algum elogio pelo quer que seja! Só agora eu sei disso e posso dar valor ao meu pai. Por isso não me importo que a Bárbara me ache um pai careta. Provavelmente, assim que ela crescer um pouco mais, há de perceber que foi tudo para o bem dela.
Mas enquanto a Bárbara não sai desta fase tão adorável, vou tentando aproveitar os últimos momentos da Sofia antes que seja a vez dela de passar por esse rito de passagem que é abominar os nossos pais aos quinze anos. Não tarda ela vai deixar de ter bonecos de peluche no quarto e de sonhar em casar com um membro de alguma boysband da moda e vai dizer-me também a viva voz que "Pearl Jam é trampa!". Das cólicas, insónias, xixis e cocós dos primeiros anos às respostas enxofradas de insensatez dos 15 anos, faz parte da vida estes cadilhos dos nossos filhos. A nós pais resta fazer o melhor que sabemos, mesmo que para isso tenhamos de ser o menos fixes possível.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Vertigem Azul

Lembras-te de como é apaixonarmos pela primeira vez? De nos entregarmos com toda a força e insensatez da idade, de nos embrulharmos nessa onda e de experimentar aquelas sensações fortes e inéditas. Mas depois, quase sempre, mesmo quando tudo termina o mais pacificamente possível, vem a desilusão e a mágoa. E a segunda vez já é diferente, já hesitamos antes de perdermos o pé, já nem todo o optimismo pode remover aquela pequena sombra de dúvida. 
Para alguns, não há sombra que enevoe a vontade de amar. Para outros, as sombras tornam-se um nevoeiro que embacia a visão e por isso, não avançam. Ou pelo menos não arriscam e só jogam pelo seguro.

Por isso é que tens vontade de voltar para ele. A bem ou a mal, tu já o conheces e sabes o que esperar dele. A vossa ruptura veio mais do tédio e do impasse em que a vossa relação estava imersa e, como tal, foi muito civilizada e cordial, e não foi difícil vocês continuarem amigos. Claro que ficaste desolada, mas não o suficiente para poderes deixar de confiar nele. E como, passado todo este tempo, ele ainda não encontrou alguém que lhe fizesse esquecer tudo o que poderia ter sido se ainda estivesse contigo, eis que o tens de novo rendido a ti, desejoso de começar de novo. Afinal, vocês já não são os mesmos que eram há uns tempos atrás.
Não o censuro que tenhas vontade de ceder aos seus encantos renovados. Aliás compreendo perfeitamente. E embora é que por mais que tenha vontade do contrário, a verdade é que até gosto do teu ex, acho-o um tipo impecável. É o sonho de qualquer mulher: atencioso, sólido, cavalheiro, protector. Seguro. Mas permite-me afirmar que talvez não seja impecável nem seguro que tu queres. E é por esse talvez que não te quero deixar.

Concedo-te a dúvida. Sei que a minha reputação amorosa não é a mais recomendável e não me orgulho dela, mas orgulho-me da sinceridade com que a abordo, contigo e com todas as outras. Se alguma foi ao engano, não foi por engano meu. Posso ser bandido mas não sou de cantigas. Para ser sincero, cantei-te a cantiga de que não me importava, mas acabaste por descobrir os acordes. Como é que sabes se podes confiar em mim? Não sabes, ou confias e não confias. Eu também não sei se posso confiar em ti, mas confio, bem mais do que estava disposto a me permitir. Claro que, inteligente como és, já sabes qual é o meu jogo de cartas e por isso, nem preciso de te dizer que tu és diferente das outras. 

Não te quero pressionar a nada, não te quero encostar à parede. Leva o tempo que precisares, reflecte e pesa os prós e os contras. Ou então, não penses e atreve-te a mergulhar. Enquanto ainda adivinhar em ti um desejo contido de pegares na minha mão e te deixares levar na onda, eu não vou a lado nenhum. Se queres segurança, fica com ele. Se queres sentir uma nova onda, vem ter comigo. Eu também gosto de jogar seguro, também eu tenho medo de me afogar, mas desde que te conheço que me apetece como nunca perder-me na vertigem azul do mergulho.

sábado, 27 de outubro de 2012

Código Civil

A luz de um novo dia resgata-me do sono. Na pequenez do meu quarto da residência universitária, estamos os dois nus sob os lençóis. A cama é tão estreita que mal cabemos os dois. Virado para a parede, sinto as costas dela nas minhas e só esse contacto é suficiente para recordar as memórias da última noite.
É a primeira vez que acordo com uma rapariga na minha cama. Há uma eternidade atrás, Imaculada tinha partido antes de eu encontrar.

Eu só sabia algumas coisas dele. Que se chamava Manuel, que tinha entrado para o curso de Direito no mesmo ano que ele e que tinha nascido em São Tomé mas que veio com os pais para Portugal quando tinha menos de um ano.

E agora Beatriz, pele de puro marfim grudada ao meu ébano. Mas na noite passada, eu não fui preto, ela não foi branca. Fui apenas homem povoado por mulher.

Sabia que ele tinha um forte sotaque são-tomense mas vim a saber que a sua vontade de exprimir era bem mais forte. Por isso, mesmo que rendilhada de arestas africanas, ele sabe bem usar a língua portuguesa e as palavras percorrem a distância. E ele gosta de argumentar e contra-argumentar.

Nem Beatriz nem Imaculada faziam parte dos meus planos. Mas fui aprendendo que quando uma mulher deseja um homem, ela trilha um caminho guiando-o até ao refúgio dos seus ardores.

Agora sei que ele foi avançando no caminho que quis traçar para a sua vida. Buscar nas palavras, nos livros, nas leis, a ponte para outro futuro, longe da dureza em que foi obrigado a crescer.

Imaculada era tão moça quanto eu, quando ela pegou em mim e tirou-me os três. Nessa altura, já era fogo em vez de sangue nas veias.

Mergulhava nos livros com os olhos no futuro e não deixou que nada o distraísse. O apelo das ruas, as intimidações, os insultos, os cantos pessimistas. Para exercitar igualmente o físico, praticou andebol e foi essa a única indulgência a que se permitiu.

Ainda andei um pouco desnorteado, o feitiço de Imaculada ainda demorou a sair-me do sistema. Foi então que percebi que, embora ninguém esteja acima da lei, existem pessoas para além do bem e do mal.

Com notas excelentes e uma bolsa de estudo por mérito, realizou o sonho de entrar em Direito e forjar um futuro no dom da palavra e no rigor das leis.

A dolorosa vertigem que ela deixou deu lugar uma terna memória e eu segui em frente. E agora sei que por vezes é preciso perder a cabeça para preservar a sanidade.

Sabia tão pouco dele e agora sei mais. Sei como cheira a sua pele, como sabe a sua boca, como soam os seus murmúrios. E pensar que tudo começou quando eu tropecei no corredor da Faculdade, deixando cair uma pilha de livros. Manuel apressou-se a ajudar-me, pegando no meu exemplar do Código Civil.

Eis-me agora convidando outra mulher a surpreender os meus desejos. Desta vez ela acordou comigo. E dou por mim a pensar que se com Imaculada foi loucura, com Beatriz poderá ser algo bem lúcido. Mas por agora, sabe bem adiar a lucidez e sentir as suas costas nas minhas.   

    

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Vamos com calma

Caro José Américo Pereira Salvador:

Os teus esforços por fim deram frutos. Já não és um homem-mistério nem uma inicial obscura. És o Salvador, o meu namorado.
A prova final foi teres sido apresentado à família Lima. Eu já sabia que irias passar a prova com distinção, mas não deixa de ser um marco importante. Para o meu pai bastou chamares-te José como ele e trabalhares na auditoria onde trabalham ou trabalharam vários amigos dele. Para o Nelson bastou tu compreenderes as piadas e as conversas dele. Para o Filipe, bastou tu seres "muito giro". Para todos, sobretudo o Ricardo, bastou ver como eu estava tão bem a teu lado. Só ficaram espantados quando te descobriram que te chamas José Américo (uma homenagem ao teu avô paterno, que morreu três meses antes de nasceres), pois pensavam que Salvador era o primeiro nome e não o apelido, pelo qual insististe desde muito novo que todos teus amigos te tratassem. (Porque, de facto, quem é que com menos de trinta anos se chama José Américo?)
Já há muito que não eras apenas alguém para enganar a solidão, que me inspirava somente desejos carnais. Agora és o homem que me assalta os sonhos e me faz sonhar acordada. Agora não coloco rédeas ao coração e digo que te amo. Conquistaste-me. Missão cumprida. E agora? Vamos com calma.

Como sabes, só me apaixonei e amei a sério uma vez antes. No calor da descoberta do amor, entreguei-me sem reservas, voei a três metros acima do céu e rasando o solo, pensando que voava de mãos dadas. Claro que ele também se entregou, talvez a mim mais do que ninguém. Disse-me que eu abri portas que ele julgava que estariam sempre fechadas e que ter-se apaixonado por mim foi das melhores coisas que lhe aconteceram na vida. Só que o problema era mesmo esse: eu amava-o e ele estava só apaixonado por mim. E quando o fulgor da paixão amainou e era preciso voltar a ter os pés no chão, o meu amor, por si só, não foi suficiente para dar os passos em frente. Claro que continuei a tentar e por isso, amei-o ainda mais e ele, ainda apaixonado, não dizia que não. Mas a verdade é que o meu amor não era suficiente para o fazer mudar e caminhar comigo. Ele continuou a preferir o conforto da imobilidade emocional a que sempre estivera habituado e por isso, não íamos a lado nenhum, nem num sentido certo nem  por uma direcção errada. Por fim, percebi que para seguir em frente, tinha que continuar sozinha.
Sofri bastante mas não me arrependo de nada. Mesmo breve, foi uma paixão que foi boa de viver e de sentir, e no fundo é isso que importa. Com o tempo, acabei por ver todo essa fase como uma lição de vida e ajudou-me, por exemplo e como te disse uma vez, a ser mais arrumada de cabeça e de coração, o que se revelou bastante útil quando embarquei nesta minha profissão.

E eis que contigo, vi-me na posição inversa. Não foi difícil apaixonar-me por ti e descobri nos teus braços, com renovado prazer, um novo tipo de paixão: serena mas intensa, divertida mas constante, despretensiosa mas viciante. Mas fui percebendo que por subterfúgios subtis que me amavas: nunca dizias nada por palavras, mas dizias tanto quando me recebias junto de ti. E isso assustava-me, pois não tinha certeza se eu poderia corresponder-te como tu merecias. Teria ficado igual àquele que amei antes de ti e era agora eu que não queria mover-me em nenhum sentido? E assustava-me sobretudo saber que eu já tinha estado no teu lugar e como isso poderia ser tão doloroso, e odiava-me por ter de fazer alguém passar por isso. Claro que nunca te queixavas, mas eu sei que as minhas hesitações magoavam-te. Felizmente que a minha indecisão acabou por se resolver, sem eu sequer dar por isso. Bastou um momento de confidências com o Ricardo e o Filipe, para de repente eu ter a epifania de te referir como "aquele que amo".

Agora acabaram-se os mistérios. És aquele que está na minha vida, que me invade o coração, em quem penso nos momentos solitários. O primeiro passo está dado. Ainda tenho bastantes incertezas, não faço ideia para onde vamos, ainda estou bastante assustada em relação a basicamente tudo. Por isso, recorre de novo à tua calma incansável com que soubeste levar a água ao moinho e vamos lá, devagarinho, um dia de cada vez, como sempre fizemos até agora. Pelo menos agora, voando ou palmilhando o solo, vamos em frente.         

With my love,

Mónica
   

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Faz Tanto Tempo

Não quero saber se o teu interesse é sincero ou se é fruto de um capricho perverso.
Não quero saber se para ti sou um recurso e não uma prioridade.
Não quero saber se as mãos que agora me estendes vão ser capazes de me ferir.
Faz tanto tempo que não sinto qualquer olhar de desejo,
por mais remoto, na minha direcção,
que basta teres tido vontade de cruzar o teu olhar no meu
para eu não dizer que não.

Não quero saber se vou sofrer por ti.
Não quero saber se depois irás remeter-me à tua indiferença.
Não quero saber dos arrependimentos ou das desilusões que poderão estar para vir.
Faz tanto tempo em que não entrava num lapso de tempo e espaço
onde não tenho de me preocupar com o que vou sentir depois
e somente apenas preocupar-me em
sentir o agora.

Por isso, faz o que quiseres fazer.
Não tenho medo de me magoar, não tenho medo de sofrer.
E se tiver de ser, sofrerei depois quando for tempo de cicatrizar.
A tempestade que venha depois,
agora só quero sentir o vento que me arrasta para ti,
sentir-te, sentir alguém, 
sentir apenas.

Faz tanto tempo...


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Números Negativos

Quase que não reconhecia a Patrícia, quando a reencontrei no restaurante. A longa trança de cabelo preto tinha dado lugar a um penteado requintado. Envergava um simples mas vistoso vestido lilás e outrora era raro vê-la sem calças de ganga. E em vez de umas simples argolas, uns caríssimos brincos com brilhantes nas orelhas. O almoço foi preenchido com conversas triviais, como vais, o que é que tens feito, o que tem chovido hoje. E eu pensava que já a tinha esquecido a Patrícia, que ela já não significava nada para mim. Até que no instante da despedida, beijei-a e quando dei por mim, tinha-a levado para minha cama e possuído como nunca o fizera.

Quando imaginava o nosso reencontro, tinha-me imaginado indiferente, moderadamente alegre ou até irado. Imaginei tudo menos do que tê-la aqui, deitada na minha cama, depois de termos voltado a fazer amor com a mesma voracidade de quando éramos mais novos mas com a arte que a nossa idade foi adquirindo. A idade fez-lhe bem, amadurecendo-lhe graciosamente a beleza e perfumando-a com uma feminilidade sensual que não conhecia. Agora que a tenha rodeada nos meus braços, não consigo sentir nada. Nem raiva, nem rancor, nem sequer desejo. Só consigo demorar-me no prazer de ter redescoberto uma sensação há muito perdida.
- Fala-me do teu ex-marido.
- Que raio de altura para eu te falar nele.
- Estou interessado. Quem foi o homem que te conquistou.
- Estás muito enganado. Não demorei a perceber que não iria ser nenhuma actriz famosa e que não ia lado nenhum. Mas já era tarde demais e tinha vergonha para voltar. Entretanto conheci o Jorge e ele apaixonou-se por mim. Sim, casei por interesse. Ele tinha dinheiro e estabilidade, e eu não. Eu gostei dele, mas nunca o amei. Mas ele sim, e achava que era suficiente. Para compensá-lo fui a esposa que ele esperava que eu fosse. Foi o papel da minha vida, representar essa mulher que não era eu. Uma mulher que parecia feliz e apaixonada pelo marido maravilhoso. Uma mulher bem vestida, sofisticada e educada, tão radiosa como as jóias que usava.

Ela senta-se na cama, os braços cruzados sobre os seios e continua:
- Eu tentei amar o Jorge. Mas não conseguia. Sobretudo na cama, era um suplício. O pobre percebia muito pouco disso, e se não o tivesse experimentado antes contigo, nunca saberia como poderia ser maravilhoso. Ainda assim, tentei o máximo que pude. Quando engravidei, pensei que um filho melhorasse as coisas. Mas o nascimento do Henrique só veio confirmar que estava a viver uma mentira. Ao ponto de também o Jorge ter deixado de comprar a ilusão. Ainda assim foi generoso comigo no divórcio. Vai-me dando dinheiro que dá para eu viver mais ou menos até conseguir um emprego e ganhar para mim, e eu fico com o Henrique durante a semana.

Levanto-me também e beijo-lhe as costas mas ela continua imóvel. De repente, desata a chorar:
- Patrícia, o que se passa?
- Tu odeias-me.
- Antes de voltar a ver-te, talvez. Mas agora, podes ter a certeza que não.
- Mesmo assim, é tarde demais. Estás bem na vida, vais-te casar e eu vim atrapalhar-te.
- Não sei se me importo de teres vindo atrapalhar-me.
- Mas vais-te importar.
Ela sai da cama e começa a vestir as cuecas e o soutien.
- Mas afinal porque é que me ligaste? 
- Porque tinha a ilusão que eu podia voltar atrás, voltar para ti, ficar contigo. Seres um pai para o Henrique.
- E se eu te disser que tudo isso é possível? Que vou deixar a Laura e que fico contigo, que eu ainda te amo.

Nestes doze anos, extingui o máximo que pude a Patrícia da minha memória e o que sentia por ela do meu coração. Mas uns resquícios, bem escassos, perduravam.
- Não me interessa mais o passado. Agora estás aqui. Podemos começar do zero.
- Mesmo que fosse possível começar do zero, ainda há antes dele os números negativos.
- Eu bem queria que fosse possível, mas agora sei que não serias feliz comigo.
- Talvez prefira ser infeliz contigo do que feliz com outra.
- Eu conheço-te, Paulo. Não há nada que queiras mais do que a felicidade. Até mais do que me queres a mim.
- Já que falaste em números negativos, eu lembro-me que em Matemática nos ensinaram que menos por menos dá mais?
- Nós não somos uma multiplicação. Somos uma adição e isso só daria um número mais negativo.

Eu próprio começo-me a vestir. Ainda estou a abotoar a camisa quando ela, já toda composta, vem-me dizer adeus e dirige-se para a porta.
- Patrícia, espera!
- Paulo, por favor, não insistas.
- Tudo bem, suponho que tens razão. É melhor eu seguir de novo o meu caminho e tu o meu. Só queria saber se tens algum plano para o resto da tarde?
- Não, nada de especial.
- Então, fica só para mais uma explicação de Matemática.
Ela vê a chuva de Outubro a bater na janela, depois olha-me nos olhos e murmura:
- Tu nunca foste muito bom de números, pois não? O teu jeito foi sempre com as letras.   


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Meu Lar Longe Do Lar

Minha Ju:

Como rapariga engenhosa e prática que és, foste tu que tiveste a ideia de comprarmos uma cama que se divide em duas no IKEA para o nosso quarto. Para fazer amor ou simplesmente para quando nos apetece apenas dormir juntinhos, juntam-se as camas e coloca-se o grande edredon. Quando um de nós está doente, quando eu quero fazer uma pausa de acordar com os teus longos cabelos esparramados na minha cara como se tivesse emergido de uma poça de algas, ou quando te fartas de acordar num cantinho da cama enquanto eu ocupo 95% do território "camal", separam-se as camas e cada um dorme para seu lado. Mas mesmo com as tuas algas capilares e todas as vicissitudes de um leito partilhado, prefiro acordar contigo ao meu lado. Cheguei ao ponto em que me sinto esquisito se acordo sozinho, como se não tivessem sido bem mais os despertares ao longo de mais de três décadas da minha vida em que só estava eu na cama.

Superada a nossa primeira crise de tédio conjugal, que não passou de uma tragicomédia encenada pelas nossas mentes inquietas, pelos nossos egos mutantes e pela nossa inexperiência amorosa, rumámos alegremente para Londres, à nossa primeira etapa das nossa férias. Nada como uma mudança de ares e um mundo de descobertas para reapreciarmos a nossa companhia mútua. Eu nunca tinha ido ao Reino Unido antes, por isso fui descobrindo a riqueza da capital da Velha Albion enquanto tu reciclavas as memórias da tua última visita, quando ainda eras adolescente e as Spice Girls e os Oasis eram a banda sonora dos nossos dias. E claro que demorámo-nos nas instalações olímpicas, assistindo às provas nos ecrãs gigantes já que o único evento que conseguimos ver in loco foi o Brasil-Turquia em voleibol feminino. Acho que nunca torci tanto por nenhum outro país que não Portugal, mas a euforia da torcida dos teus contemporâneos era altamente contagiante. Para fechar com chave de ouro, no dia antes da nossa partida, quando já me conformava em celebrar apenas as medalhas do Brasil, eis que aqueles rapazes da canoagem arrecadaram uma medalha para Portugal. Depois cada um de nós seguiu sozinho para a segunda etapa das férias, rumo à casa do respectivo pai de cada um. 

Chegado a casa, descubro que temos uma nova habitante. O meu pai seguiu o conselho de um amigo e decidiu alugar o quarto do Ricardo. A hóspede actual é uma finlandesa chamada Minna, que está a tirar um dos cursos de Verão da universidade, e é a típica nórdica, alta, loira e calada. Isto é, era calada até eu chegar. Como já te contei, quando cheguei à Noruega, por ser português (que lá é suficientemente exótico) e gostar de conversar, tive logo muito mulherio interessado. Pois o meu charme infalível fez das suas de novo junto de uma nórdica. Enquanto a Minna estava sozinha com o meu pai, era só bom dia e boa tarde, mas comigo estava sempre pronta para conversar e a pedir-me para ir passear com ela. Nem sequer se desmotivou por aí além quando eu disse que eu tinha namorada. Felizmente que a Mónica também está de férias e ofereceu-se para levá-la a passear pelas redondezas e deixei de estar no radar da Minna. Além de que parece que ela agora tem um brasileiro (nem de propósito!) debaixo de olho.

Como sempre é bom voltar ao meu país e à casa onde cresci. É bom ver o meu pai animado depois de tantos tempos de melancolia, a Mónica a construir o seu rumo (finalmente conheci o homem-mistério, o Salvador) depois de ter dado tantas voltas no mesmo eixo e o Ricardo feliz numa relação sólida quando parecia destinado à solidão. É bom sentir o espírito da minha mãe, que parece-me sempre mais próximo aqui, nos lugares e nas pessoas  que ela amou.

Mas confesso que aguardo ansiosamente o momento em volto a Oslo e regresso ao meu lar longe do meu lar, onde estás tu, as minhas coisas, as tuas coisas e as nossas coisas. E uma cama do IKEA que dá para dividir em duas e onde já me habituei a acordar junto a ti, com os teus cabelos espalhados sobre a minha cara, sob um grande edredão.

Com muitas saudades,

o teu Nelson   

    

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A Minha Lagoa Azul

É numa quarta-feira chuvosa como esta que eu anseio por um dia off, longe de tudo. Para imaginar que o mundo se resume aos metros quadrados do nosso quarto e que só existimos nós os dois, e que se lixe tudo o resto.
Ou então para sonhar que fomos parar a uma ilha paradisíaca como aquela de "A Lagoa Azul".

Uma ilha onde o céu é sempre de um azul safira, o mar é de um límpido turquesa e a areia mais branca que o sal. Onde todas as cores são tão fortes e vivas como as do Taiti que Gauguin inventou nas suas telas.
As árvores são frondosas e refrescam-nos da canícula. Alimentamo-nos de fruta e de peixe, temos uma cabana sem portas nem janelas mas com um baloiço e um escorrega. Eu passeio-me de tronco nú e tu tens cabelos bem compridos a cobrir pudicamente os teus seios. Tomamos banho de cascata e brincamos com os golfinhos e as tartarugas no mar. Ao contrário do filme, não há bagas que nos adormecem para sempre, nem tribos assustadoras das ilhas vizinhas com ritos bárbaros. Com o passar do tempo, teríamos um filho em que ensinaríamos os mistérios desta natureza primitiva mas sábia.

Eu sei que te ris quando falo de algo assim. Uma vez tu até disseste que "A Lagoa Azul" é o único filme erótico para toda a família, porque apesar de algumas cenas já serem bem puxadas, camufladas pelas atmosfera adâmica e delicodoce, é um filme que os nossos pais já nos deixavam ver quando tínhamos oito ou nove anos nos serões de cinema em família ou na sessão da tarde na televisão.
Eu bem sei que tu achas ridícula a ideia de um amor e uma cabana, e de modo algum trocarias o conforto do nosso apartamento por uma cabana frágil no meio de nenhures. E até podes ter razão. Se bem te conheço, se  acontecesse irmos para a uma ilha assim, morrias de tédio e até o ar puro te chatearia, deixando-te saudosa do monóxido de carbono dos escapes.

Não te estou a censurar, nem a chamar-te fútil ou inapta. Até porque se fosses, dificilmente me apaixonaria por ti. Deixa lá, sou eu que costumo ficar todo melancólico em quartas-feiras chuvosas. Daqui a cinco minutos, vai tocar o despertador e estás determinada a aproveitar cada segundo que te resta antes de levantares. Puxas os lençóis, enfias a cabeça debaixo da almofada, cerras bem os olhos para não encarares o tracejado do estore. Já te conheço tão bem. E percebo que enquanto fores a minha lagoa azul, eu posso estar em qualquer sítio, seja numa cidade chuvosa e cinzenta, seja numa magnífica ilha deserta.

terça-feira, 31 de julho de 2012

O melhor sítio

Agora que as minhas noites são feitas de escuridão profunda,
creio que posso dizer que já te esqueci.
Ainda não há muito tempo,
bem que podia fugir de ti,
tomar os caminhos mais longos,
redigir mentalmente listas de coisas a fazer,
funcionar hipnoticamente em modo piloto automático,
que voltavas sempre ao meu âmago. 

Qualquer sucesso obtido à luz do dia
estilhaçava-se nos sonhos onde surgias sempre para me assaltar o espírito, 
trazendo de novo a dúvida de tudo aquilo que poderia ter sido.
The one that could have been...

De que valeria convidar outras para a cama, beber à exaustão e recorrer a psicotrópicos,
se acabavas sempre por me encontrar para além da consciência?

Por essas e por outras, acho que a força de vontade é um mito.
Se a vontade movesse montanhas, eu seria um deus de paisagens transformadas,
mas eu não te conseguia esquecer
por mais que eu quisesse.

Foram medonhos os despertares feitos de almofadas mordidas,
suores frios e até alguns géiseres de desespero,
ao ponto de viver com temor da hora de adormecer.

Mas agora as minhas noites são feitas de águas turvas,
onde a luz do desejo não penetra,
onde o silêncio afugenta os choques eléctricos,
onde posso afundar o meu coração de pedra.
Onde dá para fingir que os meus pulmões são guelras
onde o esquecimento enverniza as fendas
dos espíritos inquietos. 

Não é um sítio bonito
nem planeio  fazer dele meu  albergue eterno dos tormentos
mas agora é o escuro é o melhor sítio onde eu podia estar.
Por enquanto...  

  

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Zona de conforto

Meu apaixonado S.

Quando te conheci eu não sabia que precisava de um abrigo. Tal como tu não sabias que estavas disposto a  oferecer-me a chave de uma casa. Mas arrumaste tudo, arranjaste um bom espaço para mim e acolheste-me de braços abertos. Sem dar por isso, fui-me instalando e criando o meu conforto.

Como é óbvio, não falo do teu T1 nos arrebaldes, apesar de não ser o típico bachelor pad em que homens como tu assentam arraiais assim que deixam o lar paternal, e onde as mulheres passam tendo como único apeadeiro o quarto. Pelo menos, não tens um televisor de ecrã gigante na sala nem o frigorífico cheio de cerveja. Mas nota-se pela frieza minimalista dos móveis e das linhas que é uma casa de uma pessoa só. Até para me dispensares uma gaveta foi o cabo dos trabalhos porque tinhas tudo cheio com as tuas tralhas pessoais. Mas eu não me importo porque não é dessa casa que eu falo. Já deves saber que falo do teu coração.

Tudo começou de forma simples, com uma troca de olhares no aeroporto. Tu vindo do Luxemburgo onde foste visitar parentes, eu chegada de Barcelona quando eu fazia essa rota. Vieste ter comigo, meteste conversa e eu dei por mim a dar-te troco. Nem sei bem porquê.
Faz parte do ofício de hospedeira ter uma data de espertalhões a meterem-se comigo, julgando que conseguem alguma coisa. (Mas quem foi que colou o raio de rótulo da facilidade às hospedeiras?) A esses avanços, eu reajo fazendo-me de sonsa ou, se eles persistem, ponho um tom autoritário na voz para os tirar desse sentido, ao estilo decalcado de como a minha Mãe fazia para impor a ordem quando os filhos ou os alunos dela armavam confusão. Mas ou devo ter gostado da tua pinta, ou então apanhaste-me num dia mais receptivo, o certo é que a nossa primeira conversa terminou com troca de números de telemóveis e um convite para sair. E eu a pensar porque não, era um tipo giro e simpático e já era tempo de seguir em frente depois do trágico fim da minha paixão de caixão à cova.

Devia ter previsto que na primeira vez em que fizemos amor, isto não era apenas uma sedução inocente e puramente carnal. Devia ter sentido que te tinhas apaixonado por mim. Assustou-me que tudo começasse a tornar mais sério do que gostaria cedo demais. Mas soubeste dar-me espaço para quando apetecia afastar-me e povoar prazer no meu corpo para que eu tivesse vontade de regressar. Alinhaste na minha pantomina, misto de comédia romântica e filme pornográfico, eu a fazer de mulher independente e desprendida, tu no papel de amante esclarecido. Representaste bem o teu papel, que no fundo é aquele que representas para o mundo: homem educado, inteligente, racional, profissional, sensato mas informal e afável.

Mas uma noite, depois de mais uma performance tua com direito a grande ovação e a um bis, apercebi-me que já tinha visto este acto antes. Cresci com três homens assim, o meu pai e os meus irmãos, e foi então que percebi que, tal como eles, por detrás do teu guião, estava um coração. A guiar o teu corpo, a redigir as tuas falas, a oferecer-me pernoita. O teu coração era toda uma casa, com recantos acolhedores, persianas entreabertas, alcovas que convidavam ao descanso. Tinhas-me dado a chave para me abrigar da tempestade e para voltar as vezes que eu quisesse. 

Admito que por vezes fico confusa e não sei o que fazer quanto a nós. Parece que estou a viver a mesma situação mas do lado oposto: agora tenho alguém que me ama e que se entrega a mim e agora sou eu que me deixo ficar imóvel. És tu que tens as certezas e sou eu quem tem as dúvidas e os dilemas. Estou apaixonada por ti, mas será que te amo ou apenas sinto-me comovida pelo conforto que me ofereces? Tu sabes de tudo isto, sempre soubeste. Mas nada dizes, na esperança que eu um dia também te ofereça a chave do meu coração. Enquanto esperas, vais sorrindo sempre que eu rodo a fechadura e entro na tua casa. 

Até ao próximo regresso a casa,



Mónica      

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Até tem graça

Não sei se é dos anos que passaram e que me ensinaram a minimizar os dramas mais irrisórios da vida, porque bem basta os que são mesmo sérios. Ou se foi por que entretanto, e sem dar por isso, fui ganhando a confiança e a atitude que eu desesperava por alcançar. Por vezes apetece-me pregar uns bons tabefes ao meu eu cachopo e dizer-lhe: "Porque raio estás nessa fossa? Mas de que é te queixas? Sabes lá o que são problemas a sério!"
Mas é então que me lembro que ainda hoje, já homem adulto e aparentemente pleno de maturidade, existem alturas onde também disparo trovões num copo de água, ainda duvido das minhas capacidades e das minhas acções, ainda caio em asneiras que supostamente já saberia evitar. E que, tal como toda a gente, a minha evolução é feita dando uns passos atrás para depois dar mais passos em frente. Ninguém é perfeito e quando vamos a ver, aqueles que temos como perfeitos são tão ou mais imperfeitos que nós.

Mas vá-se lá dizer isto a um puto introvertido e desajeitado, que buscava aceitação dos outros jovens, mas que sentia que toda a gente fazia parte de um clube secreto onde tudo o que era fixe, cool e maravilhoso lhe passava ao lado: sucesso, saídas à noite, namoros, amigos; e onde lhe barravam a entrada. Que sentia que toda a gente lidava com os seus desafios com a habilidade de um malabarista enquanto ele não parecia dar um passo sem que se espalhasse ao comprido. Para que o espezinhassem sem que ele tivesse a coragem de ripostar.

Mas se mantivermos as costas direitas, dificilmente alguém subirá para cima delas. E lá fui endireitando-me, a tirar os olhos do chão e olhar em frente. Olhando também para dentro e descobrindo que eu afinal tinha valor, e que não era tão pouco como isso. E como tal, outros começaram a descobrir e a apreciar esse meu valor.  Aqueles que não o viam, o mal era deles. Além de que eventualmente, fui-me apercebendo que estava longe de ser o único a sentir-me assim. Ainda hoje é para mim um motivo de orgulho quando alguém sente-se à vontade para deixar revelar-me as suas fragilidades e inseguranças. 

Na altura, tudo o que eu passei foi tudo menos divertido. Mas agora, olhando para trás, até tem graça. E sobretudo, faz-me apreciar ainda mais todo o caminho que percorri e tudo o que alcancei. Ainda há muito para andar, e talvez até esteja um pouco atrás do que seria necessário para a minha idade, mas o que posso mais fazer? Só esperar que os recuos não sejam tão grandes como os avanços.  

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Os dígitos da balança

Na escola, nós éramos as gordas da turma e o alvo mais óbvio de troça. Esse fardo comum que era uma mescla de vergonha e frustração serviu para que ficássemos amigas. No final do liceu, cada uma foi à sua vida mas, ao fim destes anos todos, foi óptimo reencontrar-te e retomarmos a amizade antiga, que descobrimos continuar bastante forte, apesar das coisas terem mudado.

A principal diferença é que tu agora és uma autêntica gaja boa. Enquanto isso, por entre passos à frente e passos atrás, já não é nada mau eu nunca mais ter regressado ao número de três dígitos que eu pesava aos dezoito anos e não ascender à casa dos noventa há três anos. Mas sabes lá o esforço que foi só para alcançar isso, e mesmo assim, ao pé de ti, pareço uma lagarta ao lado de uma borboleta.
Se bem que não me surpreende nada a tua metamorfose. Ao contrário de mim, tu nunca foste tímida e sempre conseguiste levar a tua avante. Simplesmente trocaste o conforto que encontravas na comida pelo o do exercício físico e tornaste-te a fanática do ginásio que és hoje.

Como tal, homens não te faltam, é só estalares os dedos. Mas isso é que me preocupa. Estarás a compensar os anos perdidos em que eras invisível às atenções masculinas? Ou será que não estarás agora a bloquear as tuas emoções com sexo, tal como dantes fazias com a comida? 
Não te apoquentes, sei que não és uma mulher fácil, que escolhes só o melhor da mercadoria, que tomas todas as precauções para evitar surpresas desagradáveis e nunca perdes o controlo da situação. E eu até admito que também tenho um pouquinho de inveja por seres tão desejada. Se não tivesse conhecido o Rui e se ele não tivesse tido a capacidade de me ver para além dos dígitos da balança, provavelmente ainda era virgem com esta idade. Juntando o meu peso que me garante invisibilidade ou lugar cativo em caixotes do lixo de tanto gajo à minha ultra timidez natural, as perspectivas não eram muito animadoras. Por isso, dou graças infinitas a todos os anjos e santos pelo Rui.

O que me chateia sobretudo é que talvez já tenhas o homem ideal para ti na tua vida e tu não és capaz de lhe dar uma chance. Ainda não tinhas percebido que o Duarte quer ser mais do que amigo e do ombro em que choras? Que ele está lá sempre que precisas, na esperança que tu abras os olhos? Nunca reparaste no sorriso amarelo dele quando te vê a dar trela a mais um marmanjo? Diz-se que os homens só captam os sinais se os escarrapacharmos à frente deles, mas pelos vistos algumas mulheres são assim. Havia de ser comigo, havia, com um tipo tão giro e porreiraço como o Duarte, queria lá saber se a amizade se estragava ou não.

Por favor, não me faças arrepender de o ter aconselhado. Sim, fui eu que disse ao Duarte para te oferecer romance, em vez de só a amizade. Com ele confortavelmente alojado na categoria de amigalhaço, é natural que não conseguisses ver para além disso. Por isso, ele avançou para a sedução e tu não lhe resististe. E eu toda feliz e ufana no meu sucesso de matchmaker para agora estares toda essa pilha de nervos. 
Agora estás toda confusa, porque não controlas a situação, não saíram as cartas que tu esperavas. Andas a fugir do Duarte como o diabo da cruz e não lhe atendes os telefonemas. E ele todo perturbado, a pensar que se calhar ele deu uma grande argolada, que foi tudo um desastre. Mas se bem te conheço, o que te chateia mesmo foi a coisa ter corrido bem. Se fosse mau, poderias varrer a experiência para debaixo do tapete. Mas como foi bom, sabes que as coisas complicavam-se.

Eu já nem sei se sirvo para dar conselhos a alguém, mas se ainda queres o meu conselho, acho que não tens nada a perder. E não tenhas medo desta mistura de sentimentos que estás a experimentar. Uma pessoa está mais viva quando mais sente. Por isso, arrisca com o Duarte. Por uma vez na vida, não bloqueies as tuas emoções: abre as comportas e deixa-te inundar por tudo aquilo que sentires. Mesmo que não resulte, vais ver que só por isso valerá a pena. 
E não compliques o que é simples. Complicado é perder peso e manter os dígitos de balança num bom número.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Nós, os cromos

Nós somos os anos 70, 80 e 90.

Nós somos os cromos que colámos nas cadernetas, dos jogadores do Mundial do México 1986 aos pequenos póneis e às Abelhas Maias. Somos os berlindes, as borrachinhas e as folhinhas de cheiro.

Somos os brinquedos básicos, quase rudimentares, sem pilhas, comando à distância ou tecnologia de ponta, mas que nos permitem inventar todo um universo de aventuras. Somos os carrinhos de corda, os bonecos de PVC, as Tuchas e as Barbies. Somos o ZX Spectrum e a Sega Megadrive. Somos as Barriguitas e os Pin y Pons, os Legos e os Playmobils,  as Tartarugas Ninja e os Moto-Ratos de Marte, o Quem É Quem e o Traga-Bolas.

Nós somos as brincadeiras estúpidas com uma dose de violência de q.b., que esperamos ser um justo preço a pagar por um ego insuflado de virilidade e admiração. Somos o elástico comprado a metro nas lojas de tecido e que pulamos em ladainhas enigmáticas. Somos as bolas que pontapeamos, as cordas que saltamos, as macacas que pulamos ao pé-coxinho. Somos os gritos do "1,2,3, macaquinho do chinês" e do "Lá vai alho!". Somos o coito da apanhada e o salva-todos das escondidas. Somos os triciclos e as bicicletas, os carrinhos de rolamentos por essas ladeiras abaixo.

Nós somos as guloseimas que têm tanto de saborosas como de duvidosas, as palhinhas do Capri-Sonne e do leite escolar, os balões de pastilha elástica. Somos os Tou dos Bollycaos e os Pega-Monstros das batatas fritas. Somos as caricas da Sumol e os crachás do Fruto Real. Somos o arroz tufado do Toffee Crispy, as cores das Pintarolas, os dedos de caramelo e biscoito crocante do Raider (mais tarde Twix). Somos a pastilha do Epá, o cone do Cornetto, a cobertura fina do Fizz Limão. Somos os chupas Mouro, os caramelos Penha, os corantes das PetaZetas e os Sugus de morango.

Nós somos os arranhões, esfoladelas, nódoas negras e galos na cabeça. Somos os remédios que na altura ainda sabiam mal, o adesivo da tuberculina que nos dará sinal verde para irmos à praia e o Quitoso a exterminar os nossos piolhos e lêndeas.

Nós somos as calças de fazenda que picam, os kispos pneumáticos, os collants para rapazes, as meias de renda para as raparigas. Somos os jeans & jackets de ganga, os ténis Sanjo e as sapatilhas de ginástica. Somos as perneiras, as joelheiras nas calças, as cotoveleiras nas camisolas e os enchumaços dos casacos.  Somos os RayBans e as bandeletes. Somos os penteados embaraçosos e a maquilhagem exagerada.

Nós somos a televisão de dois canais, sem telecomando. Somos o miúdo sugado pela nave do "Tempo dos Mais Novos", os desenhos animados dos países do Pacto de Varsóvia e os mui americanos Looney Toons, o Conan e a Candy-Candy. Somos os assobios do Verão Azul, o carro d'O Justiceiro, o canivete do MacGyver, as bóias das Marés Vivas, os blazers do Miami Vice. Somos as telenovelas com sotaque brasileiro, o Festival da Eurovisão, os Telejornais e os jogos de futebol. Somos o nariz do Júlio Isidro, os brincos da Valentina Torres e o gongo da Amiga Olga.

Nós somos o sabre luminoso do Luke Skywalker, os aviões do Top Gun, o chicote do Indiana Jones, os chapéus da Pretty Woman, as garras do Freddy Krueger, o iceberg do Titanic. Somos a Gente Gira que adora um bom Gelado de Limão. Somos mais Fatais que o Instinto ou a Atracção, mais certeiros que os murros do Rocky ou a metralhadora do Rambo. Somos os dentes do Tubarão, a luzinha do E.T., as pegadas do Parque Jurássico.

Nós somos Cinco ou Sete, sempre no meio de Uma Aventura. Somos cá da turma da Mônica e entramos no clube do Bolinha. (Até as meninas entram!) Somos os sobrinhos do Pato Donald e os heróis da Marvel. Somos as capas de filmes da TV Guia e os posters da Bravo. Somos o Correio do Chico Omelete e as páginas centrais da revista de Domingo. (Porque a Gina é muito cara...)

Nós somos as colectâneas de vinil e de CD, somos as cassetes BASF gravadas e regravadas. Somos o electro-pop, o disco-sound, o punk gótico, o heavy metal, o grunge, o rap, a dance music e a música pimba. Somos os slows açucarados e as grandes malhas para exibir os melhores passos de dança ou para andar de carrinhos de choque. Somos os soutiens da Madonna e as bandanas dos Dire Straits. Somos o moonwalk do Michael Jackson e a coreografia da Macarena.  

Nós somos aquele rapaz geek e aquela rapariga desajeitada que são um alvo fácil de troça. Somos aqueles que ficam sentados nos bailes a verem os parzinhos a dançar num clima ultra-romântico. Somos os sonhos coloridos a pensar no rapaz ou na rapariga por quem temos um fraquinho e outros sonhos mais libidinosos a pensar nas mamas da Sabrina/Samantha Fox/Pamela Anderson ou nos torsos desnudados dos Bros./Take That/Backstreet Boys. Somos a inveja mais ou menos evidente pelos colegas que têm sempre brinquedos fantásticos, roupas de marca, e os rapazes ou as raparigas a seus pés.

Nós somos os adultos que se riem dos cromos que nós éramos, que olhamos para esses tempos com uma nostalgia ternurenta que passou uma camada de verniz sobre as coisas más e imprimiu um brilho eterno às coisas boas. Somos o Nuno Markl a documentar com humor e empenho todos estes pequenos grandes retalhos daquilo que somos. Somos as festas Back to the 80's e Let's Control the 90's. Somos os blogues especializados, as páginas do Facebook que começam por "Eu ainda sou do tempo de...", os livros de história e os álbuns de fotografias.

Para o pior e  para o melhor, nós fomos, somos e seremos uns grandes cromos. E ainda bem.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Criaturas terrestres

Vá lá, arrisca que uma miúda como a Sara vale a pena. Ela diz que não está chateada, afinal de contas ainda não eram oficialmente namorados, mas claro que ficou magoada por saber que tu andaste a fazer revisão da matéria dada com a Telma, uma dessas mulheres-andorinhas que andam sempre de pouso em pouso e volta e meia regressam às paragens antigas, no meio de um belo chilreio para depois bateram as asinhas. Tantas dessas mulheres costumam ter-te como paragem no itinerário e nunca recusaste o albergue.
Não há mal nenhum nisso, desde que não tenhas na tua vida alguém que te pode dar a primavera no ano inteiro. Já dizia o Bukowski que um homem só precisa de muitas mulheres quando nenhuma delas é grande coisa. E até esse doido poeta do álcool, da indigência e dos low life, mesmo com trezentas ressacas por ano, teve cabeça suficiente para perceber que lhe tinha calhado uma rapariga decente no meio das mulheres que o circundaram, quando o sucesso finalmente o tornou sexualmente atraente e esforçou-se o melhor que pôde por Linda Lee Beighle. Curiosamente, em Mulheres, o romance onde compendiou as mulheres que agora se aproximavam dele aos enxames nessa fase da vida em que ele se viu quase um rockstar, cheia de sexo e com a eterna amiga garrafa em vez das drogas e do rock&roll, Bukowski deu a Beighle o pseudónimo de Sara.

Agora chegou a altura de descobrires se queres lutar pela tua Sara. Pensa com cuidado no que lhe vais dizer mas mantém o discurso simples e directo. Basta apenas dizer que gostas dela, que ela é diferente de todas as outras que vieram à tua rede, que és capaz de dar mais que aquilo que tens dado. É isso que ela quer ouvir-te dizer, e se reparares bem, vais ver que estas palavras estiveram sempre em ti.  Não te deixes enganar quando ela diz que está tudo bem e não precisas de justificações nem pela sua pose forte e orgulhosa. Sabes muito bem que um dos ardis das mulheres é dizer um coisa e querer dizer outra, esperando que nós não sejamos tão básicos e que saibamos captar a mensagem subliminar.

Não te rales com um boçal orgulho de macho, não tenhas medo de fazer figura parva, não receies que as palavras se enredem na garganta e saiam meio cacofónicas, ela é esperta o suficiente para perceber tudo e não levar a mal a tua atrapalhação. Ela saberá que tu estás a dar um passo que nunca deste antes. Fica mais bonito se lhe disseres olhos nos olhos, mais cinematográfico se te declarares publicamente mas basta pegares no telefone e dizeres tudo. A mensagem é que interessa, seja em acordes de guitarra ou em compassos telegráficos.

Deixa as migrações amorosas para as aves a sério, que têm asas e são livres de voar para onde bem entenderem. Nós somos criaturas terrestres, de pés assentes no chão. Mas mesmo assim, percorremos caminhos, visitamos países, vencemos distâncias. Dá-lhe uma oportunidade de te guiar. Quem sabe se ela não te dá a conhecer os rumos que te levam aonde sempre quiseste chegar, mas que não podias porque andavas às voltas nos mesmos lugares?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O quarto elemento

Quando fizeste a minha carta astral, frisaste que o Fogo é o meu elemento dominante. Não apenas por o meu signo ser Leão, mas também porque outros planetas e casas astrais impelem para este elemento, como acendalhas para uma fogueira. Quanto mais penso nisso, mais fico com a certeza que tens razão, que o fogo é o meu elemento. Sou uma mulher fogosa, pode-se até dizer. Cada um é para o que nasce e eu não nasci para ser uma princesa de gelo. Mesmo numa situação que requer alguma dissimulação da minha parte, prefiro esconder-me atrás de um sorriso amarelo do que fazer uma cara de póquer. Vivo a minha vida intensamente, porque acho que uma vida que se vive sem emoção fica apenas meio vivida.
Também disseste que eu não estava mal servida de Terra e de Água, mas que o Ar era insuficiente no meu mapa astral. Que sem Ar, o meu Fogo corre o risco de arder sem governo, queimando tudo no seu trilho disforme ou então apagar-se, carente de oxigénio para se alimentar. Tal como o vento ateia os incêndios mais fortes e apaga os mais fracos. E eu também sei uma coisa ou duas sobre mexer no fogo e sair queimada. (Não literalmente, diga-se).

Tu és mesmo assim, dizes coisas que a princípio soam tão bizarras, mas vai-se a ver batem certo. Por essas e por outras, estava particularmente ansiosa por saber a tua opinião do Francisco quando o apresentei ao nosso grupo de amigos. Primeiro, porque não és de meias tintas e tens uma franqueza não muito politicamente correcta mas eficaz. Segundo, por causa daquele fraquinho que tiveste em tempos por mim. Que nunca confessaste abertamente mas como sou boa entendedora, meia palavra bastou, tal como outra meia palavra bastou para te dar a entender que tinhas de apontar noutra direcção, porque em mim não terias mais que uma amiga. Mas sei que um dos efeitos dessa fase foi teres delineado uns padrões bem elevados para aquele que eventualmente me assaltasse o coração, não podia ser um qualquer fulano.

Quando conheceste o Francisco, ainda não andávamos oficialmente. Era mais andarmos a ver se andávamos, que isto de tanto tempo a sermos só bons amigos e depois considerar a hipótese de sermos bons amantes é um território com as suas armadilhas e tínhamos de ter bem a certeza onde pôr o pé.
Mas foi com alegria que tu o aprovaste. Achaste-o reservado mas simpático, discreto mas com presença, informal mas educado. Só franzi o sobrolho quando disseste que ele tinha uns olhos como o Droopy, aquele cão dos desenhos animados. É de facto frequente dizerem que ele tem um olhar triste, mas não diria que é o olhar de um cãozinho frágil e abandonado. Ao que prontamente relembraste que o Droopy podia ser triste e sensível, mas não era de todo frágil e ele safava-se sempre muito bem de quem o queria tramar.
Depois de mais um tempo de convivência e em que a toda a nosso círculo já o considerava um amigo, seguiu-se a oficialização. Foi então que me disseste que o strong silent type fica-me bem. Mais uma vez, tinhas razão. O Francisco é mesmo assim, quieto, na dele, mas sempre atento, agindo só nos momentos- chave, como uma força tranquila mas persistente. O pior é que eu sempre tive uma queda para os rebeldes e para os figurões: encantava-me a sensualidade bandida e as viagens alucinantes numa montanha russa de emoções. Já a minha mãe dizia que eu me tornei advogada para defender causas perdidas e fazer os bandidos parecerem santos. No meu caso, até nem era o típico síndroma feminino de amar o Che Guevara e depois pedir-lhe para fazer a barba. Era mais uma vez o meu Fogo, sempre a querer atear-se e arder por todo o lado. Mas quem ficava sempre ardida era eu, quando vinha de novo a lucidez.

Ainda não sabia que o verdadeiro calor vem das brasas e não da chama. E basta uma centelha para que o fogo renasça, mais belo e ardente que antes. Foi o que aconteceu entre mim e o Francisco. No seu jeito, esperou que eu perdesse tempo com esses bandidos até eu abrir os olhos e ver que o que eu andava à procura esteve sempre ali. E vi que ele esteve sempre lá quando precisei dele, sempre com um sorriso nunca triste. À medida que o meu olhar ia ficando mais atento, descobri o seu discreto mas poderoso charme, os elementos de um namorado dedicado e de um amante intenso. Fiquei rendida. Assustada mas completamente rendida e decidida a arriscar a travessia do campo minado que separa os amigos dos que são mais que isso. Mas desviei-me das armadilhas e não olhei para trás. E surpresa das surpresas, o Francisco é Aquário, signo do Ar. O elemento que tu disseste que eu tinha em carência. Mas agora acho que encontrei o meu quarto elemento que, tal como o vento, sabe como amainar as minhas chamas mais descontroladas e aumentar aquelas que me fazem viver.

Já agora, mesmo sabendo que quem sabe de Astrologia és tu, permite-me um conselho. Como o teu signo é da Terra, não queiras uma mulher de Fogo como eu, que podes ficar com o teu solo macio e fértil todo ardido. Olha, procura talvez uma com signo de Água, que saiba como regar a tua Terra, para que se mantenha sempre verde e viçosa.

domingo, 10 de junho de 2012

A lição de Panenka

O pai chegou a casa e viu o petiz de dez anos algo cabisbaixo, a ver televisão com cara de quem não estava a prestar atenção para o que se passava no ecrã. O pai sentou-se ao lado dele, pôs o seu melhor sorriso n.º 33 e pousou a mão na cabeça do miúdo, dizendo suavemente:
- Então, filho, estás bem?
- Estou.
- Parece que estás preocupado com alguma coisa.
- Não é nada. Estou só a ver televisão.
- Não sabia que costumavas ver os programas de culinária da SIC Mulher.
- Bem...até nem estava a prestar muita atenção. Estava a pensar numas coisas.
- O dia correu-te mal na escola?
- Nem por isso. Foi só uma coisa, mas não tem importância.
- Mas diz lá.
- Bem, é que no recreio fomos jogar à bola e a certa altura, o Eduardo sugeriu que fizéssemos um concurso de penaltis. Sabes, ele anda nas escolas de futebol do Desportivo e joga a guarda-redes. Nós gostámos da ideia e, então um de cada vez, ia rematando à baliza e o Eduardo tentava defender. E eu fui o único que não conseguiu marcar nenhum golo. Está bem que o Eduardo é muito bom guarda-redes e fez grandes defesas, mas todos os outros conseguiram batê-lo pelo menos uma vez. Só eu é que não consegui. Ou os meus remates saíam muito fraquinhos ou então chutava com força demais e saía para fora...
- E os outros começaram a gozar contigo?
- Houve alguns risinhos e algumas bocas, mas eu fingi que não liguei. Aliás, era só um jogo, não é?
- Mas ficaste um bocado envergonhado de não teres conseguido marcar um penalti, não foi?
- Foi. Não é que eu queira ser futebolista, como alguns dos meus colegas, mas gosto de jogar à bola e não quero ser menos que os outros.
- No fundo, queres ser competitivo.
- Sim, isso. Mas infelizmente não sou bom finalizador, e não tenho um remate forte e certeiro como o Ruben ou o Bernardo.
- Podes não ser bom finalizador, mas com certeza és bom noutras coisas: a defender, a passar...
- Eu sei...
O pai esboçou um sorriso. Recordava-se também do tempo em que passou por algo semelhante, nas suas brincadeiras à bola em criança. E da ingénua insensatez de criança com que se fazia troça dos menos hábeis. E orgulhou-se do filho, apesar de incomodado, não ter dado parte de fraco, tentando minimizar as troças. Podia contar-lhe que também em pequeno tinha passado pela mesma situação, numa peladinha que tinha sido desastrosa para ele, que também ele sentira-se um aselha do pontapé, mas que no jogo seguinte, já estava tudo amigos como dantes e que no jogo seguinte, esteve bem melhor. Mas optou por contar-lhe outra história.
- Já ouviste falar de Antonin Panenka?
- Quem?
- Antonin Panenka. Era um jogador da selecção da Checoslováquia.
- É, dantes a República Checa e a Eslováquia era um só país.
- Exactamente. E quando a tinha mais ou menos a tua idade, vi a final do Europeu de 1976, na antiga Jugoslávia. Em Zagreb, a Checoslováquia estava a jogar contra a Alemanha, que era campeã mundial e europeia, que tinha grandes jogadores como Beckenbauer, e aquele que era o melhor guarda-redes na altura, Sepp Maier. O jogo terminou empatado 2-2 após o prolongamento e teve que ir às grandes penalidades. Quando um dos alemães falhou o penalti, se a Checoslováquia acertasse a seguir, vencia. Foi então que Panenka preparou-se para rematar. Mas ele sabia que no futebol, usar a cabeça é tão importante como ser bom de pés. Reparou que Maier conseguia adivinhar para onde é que os rematadores iriam chutar a bola e saltava que nem uma aranha para os defender e assim conseguia evitar muitos golos e penaltis. Então em vez de apostar num pontapé forte, Panenka decidiu fazer algo completamente diferente, nunca visto antes. Enquanto corria para rematar, deu uns passos a travar posicionando-se como se fosse chutar para a direita. Mas em vez disso, deu apenas um remate seco em frente. Como Maier, enganado, saltou para a direita, nada pode fazer quando viu a bola aterrar no meio da baliza. E assim a Checoslováquia tornou-se campeã da Europa e Panenka ficou para a história, não por um golo ou remate espectacular, mas por ter usado a cabeça e observado bem. Desde então, esse tipo de penalti passou-se a chamar o penalti à Panenka e só uns quantos jogadores souberam dominá-lo tão bem como ele. Mas por exemplo, o Hélder Postiga marcou um penalti assim no Euro 2004, contra a Inglaterra.
- Ah, pois foi. - replicou o petiz calmamente.
Mas o pai reparou que o semblante do filho estava mais animado.
- Da próxima vez que fizerem um concurso de penaltis, vê-se que consegues fazer como o Panenka e enganar o Eduardo.
- Talvez.
Nisto, a mãe apareceu na sala.
- Filho, anda pôr a mesa para irmos jantar.
- Está bem. - respondeu o petiz.

- Bem, grande história que te lembraste de contar só para o nosso filho não ficar chateado. - exclamou a esposa assim que o filho se dirigiu para a cozinha.
- Eu estava inspirado. Mas eu lembro-me bem desse jogo, como se tivesse sido ontem, por isso foi fácil contar tudo.
- Sim, senhor.
Após um breve silêncio, ela disse em voz baixa.
- Foi em Belgrado.
- O quê?
- A final do Europeu de 1976 foi em Belgrado, disseste que tinha sido em Zagreb. Mas estiveste bem na mesma.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Principiante Amoroso

Caro maninho:

Acabo de regressar de quatro dias passados em Amesterdão. Fiquei em casa da família de um colega holandês lá do laboratório, o Arjen. Connosco também veio um casal aqui das Noruegas, a Trine, também nossa colega, e o noivo dela, o Espen. Lá na Noruega, interessam-se sobretudo pelos desportos de Inverno, mas o Espen é doido por futebol e costuma tratar o Arjen por Robben, como o jogador do Bayern de Munique. Já a um amigo nosso que é checo, careca e chama-se Jan, ele chama-lhe Koller. Por este andar, ainda se põe a chamar-me Oliveira...
A Ju não pôde tirar os dias e por isso ficou em Oslo. Mas se puder, quero um dia voltar à Holanda. Já tinha imensa vontade de conhecer o país pelo que tu falavas dele, mas agora que já estive em Amesterdão, gostava de conhecer outras cidades como Roterdão, Eindhoven e Haia, onde tu fizeste o Erasmus. Ainda por cima se, segundo dizes, essas cidades são bem diferentes de Amesterdão. 
Tu já tinhas contado e recontado tanta coisa sobre a cidade, já vi tantas fotografias e imagens na televisão, mas nada se compara a caminhar por aquelas ruas calcetadas, atravessar as pontes e ver os canais. Sempre achei tão redutor como uma cidade cheia de história, cultura e dinamismo seja famosa sobretudo pelas coffeeshops e as meninas das montras do Red Light District, quando até no dito cujo há muito mais que isso. Como uma padaria onde tomei o melhor pequeno almoço da minha vida, um belo de um café au lait com um croissant com geleia de limão que só te digo. As minhas papilas gustativas tiveram um orgasmo múltiplo! 
Claro que aproveitámos para ir ao máximo número de sítios famosos, como os Museus Rijks, Van Gogh e Madame Tussaud's, a casa da Anne Frank e, por exigência do Espen, o estádio do Ajax. Provámos também os arenques, mas eu e os noruegueses ainda preferimos de longe o bacalhau. A única chatice foi que na última noite a Trine e o Espen emborcaram cerveja como se não houve amanhã e andaram a falar ao Gregório durante o resto da noite. A relação dos nórdicos com a bebida é mesmo assim, quando bebem é para a desgraça, são tão regrados que quando pisam o risco, pisam a valer...Mas enfim, adorei esta oportunidade de finalmente conhecer Amesterdão e foi óptimo para mim desanuviar, já que nestas últimas semanas andava numa rotina entediante.

Tenho andado a fazer coisas bastantes repetitivas no laboratório e claro que isso cansa. Felizmente estamos quase a terminar a pesquisa. O pior tem sido, em casa com a Ju. Não, não nos zangámos. Simplesmente estamos numa fase mais apática na nossa relação. Primeiro foi a euforia de nos conhecermos e começarmos a namorar, depois a de ela se mudar aqui para o meu apartamento e agora andamos há algum tempo assim. Os dias andam uns atrás dos outros, levantamo-nos, comemos, fazemos a lida da casa, andamos em modo de piloto automático. Sabes muito bem que eu não tenho nada contra uma rotina, que gosto de seguir coisas à risca e de saber com o que contar e não gosto de lidar com imprevistos. Talvez se estivesse sozinho isso não me causasse tanto transtorno. Mas eu tenho aquela que eu amo aqui comigo e não consigo deixar de me sentir chateado por a nossa relação estar actualmente num tédio onde até a nossa intimidade tornou-se previsível. E sem me dizer nada, consigo sentir que a Juliana sente o mesmo que eu.
Talvez estejamos a sentir estas apreensões todas pois esta é a primeira relação séria para ambos. Não somos ingénuos para achar que ia ser tudo azul e cor-de-rosa quando encontrássemos o amor e sabemos perfeitamente que todas as suas relações têm volta e meia as suas fases de tédio, inquietude, dúvida e até mesmo de irritação mútua. Mas a verdade é que andamos neste limbo, entre aborrecidos e apreensivos, como se ainda fossemos adolescentes a desbravar primeiros caminhos nos meandros do coração.  
Se ao menos tivéssemos tido algum ensaio no passado, por mais pequeno que fosse, para sentirmos que tínhamos passado por algo minimamente semelhante. Só que ela, por causa do trauma da mãe e da sua timidez natural, nunca permitiu entregar-se verdadeiramente a alguém antes de mim, à parte um romance de férias que ela teve há uns anos mas que foi breve demais para ela ficar devidamente instruída. E eu passei demasiado tempo a ser um tótó que não percebia as mensagens subliminares de quem estaria eventualmente interessada em mim, como algumas amigas da Mónica, ou a andar obcecado com a Mafalda que ao trocar o código Morse pela boca no trombone, fez-me o obséquio de me inaugurar. Gastei imenso tempo a imaginar que vivia com a Mafalda um amor de perdição sem perceber que ela era um pombinha da Catrina: era de quem a apanhar, ou de quem ela apanhasse, até bater as asinhas de novo. Depois, com a minha própria metamorfose de nerd para chic magnet, também eu fui pousando e voando até aterrar em Oslo e deixar-me conquistar por uma brasileira muito tímida mas tão linda que só ela. 
Com isto tudo dei a imaginar como terá sido com os nossos pais ao longo dos anos. Sempre mantiveram uma frente unida diante de nós, mas também por vezes não era difícil ver que também passavam por períodos bastante difíceis, onde pouco bastava para que um deles ficasse incomodado com o outro. Não que o amor deles alguma vez estivesse em causa, mas entre problemas de trabalho, três filhos para cuidar, contas para pagar e mais outras chatices não menos ibidem, houve sem dúvida alturas em que a relação entre ambos ficou descurada. Decerto que tu também já passaste o mesmo com o Filipe e que tiveste de recorrer a todos os teus conhecimentos de psicologia (ou então se calhar tiveste que deitar esses conhecimentos às urtigas!) para ultrapassar essas fases. 

Bem, mas não te vou maçar mais com estas minhas interrogações de principiante amoroso. Como em tudo o resto, é viver e aprender. Aliás, a minha profissão não tem tanto de tentativas, erros e acertos? Como sempre um abraço ao nosso pai e um beijinho à Mónica. 

Nelson

P.S.: Quando cheguei a casa, encontrei a Ju como sempre a ler, os óculos postos, o cabelo apanhado ao alto, os pés apoiados no tamborete do sofá, como tantas vezes nos últimos meses. Não se foi das saudades, dos meus olhos terem lavado a vista com a viagem ou destes devaneios a que a minha mente resolveu entregar-se, mas só me apetecia beijá-la. E quando ela olhou para mim e disse "Senti sua falta", percebi que até numa fase menos boa, mesmo com tédio e desencanto, é com ela que eu quero estar e isso é que importa.

  

     

terça-feira, 29 de maio de 2012

Um rasto na pele

Tu só podes ser uma feiticeira, Lena. De outro modo, como explicar todo o poder que ainda tens sobre mim, que vai além de qualquer coisa racional? Como soubeste desvendar os meus pensamentos mais secretos, que eu escondia até de mim própria? Como andas sempre desaparecida um tanto tempo para apareceres justamente quando eu estou sem ninguém e promoveres mais um reencontro?
E depois de cada fugaz reencontro, deixas-me de novo mais material na minha mente para deixar o meu corpo em brasa quando penso em ti e em tudo o que fizemos, e no que ainda há vontade de fazer algures no futuro.

Apesar de tudo, eu prefiro os homens e não me considero lésbica, mas desde bastante cedo que percebi que não era indiferente aos encantos de alguns exemplares do meu sexo. E que realizar gestos mais sensuais com outra mulher era um desejo que guardava no mais íntimo do meu ser, mas antes de ti era um risco que eu nunca ousaria pisar.
Contigo passa-se algo semelhante. Tu aliás já foste casada e não te fazes rogada em falar de todos aqueles que conquistas. Somos ambas mulheres de beleza vulgar, não fazemos parar o trânsito, mas ao contrário de mim, sempre soubeste jogar com os dotes que te deram a teu favor e sempre tiveste os homens que quiseste. E uma ou outra mulher também, sei que não fui a única. Não gosto do teu jeito descarado e desbocado, por vezes a roçar o ordinário, mas já percebi que não é defeito, é feitio. E além disso, isso faz-me admirar-te ainda mais. Nunca conheci ninguém que tivesse um lado tão extremamente devasso e outro tão extremamente sensato. Fazes ideia como é tão difícil conseguir um equilíbrio perfeito como o que tu tens entre essas tuas duas facetas? Ou como a maioria das pessoas que o tenta alcançar acaba por derrubar um dos pratos da balança?

Mas mais importante de que tudo, tens sido uma boa amiga ao longo do ror de anos em que nos conhecemos. Tens tido sempre as palavras e os gestos para me animar, reconfortar e aconselhar e a paciência para me ouvir, e consigo perceber que acima de tudo, também me consideras uma grande amiga. Daí que seja tão fácil regressar ao modo de grandes amigas, antes e depois de darmos largas aos nossos desejos mais inconfessáveis nos braços uma da outra.
Talvez seja a vertigem da transgressão e do secretismo, talvez seja a frequência esporádica que impede o fastio, talvez seja o desejo a falar mais alto que tudo. Mas sempre que acontece, o êxtase é sempre o mesmo, pelo menos para mim. Como da primeira vez em que nos tocámos como eu secretamente desejava tocar e ser tocada por outra mulher. E, feiticeira como és, deixas-me sempre um rasto na pele e na alma que me faz ansiar, por muito que não queira, pela próxima vez e que me faz pensar em ti em sonhos que sonho quando a solidão aperta e o desejo invade-me.

Já há muito que deixei de racionalizar e de negar o que sinto. Isto entre nós, seja lá o que for, atracção, química, tusa, existe, é bem real e não há como negar. Por isso, quando me ligas e pedes para eu ir ter contigo, já nem me dou ao trabalho de inventar desculpas para dizer que não. Tu já sabes que eu também quero. Assim como sei que, tal como eu, e mesmo com toda essa tua libido bizarra, sonhas com o amor e a felicidade. E se tudo o mais falhar, sempre podes chamar por mim. Já sabes que eu não consigo quebrar o teu feitiço.  


domingo, 6 de maio de 2012

Insanidade temporária

Como pode ela ignorar o olhar cortante do homem da mesa à frente? Desde que entrara naquele restaurante que notara que ele a observava. E ela não consegue disfarçar a inquietude que ele lhe provoca. Nem conseguiu apreciar o jantar, logo hoje que tinha uma há muito ansiada noite livre só para ela, com a filha em casa da avó.
Ela sabia bem que não era um simples olhar de interesse ou de atracção. Já quase que tinha esquecido como era um olhar daqueles. Um olhar de um homem que deseja uma mulher. Um olhar que a trespassava, que parecia despi-la, que inspirava todo o tipo de luxúria e devassidão. 
Como seria possível alguém voltar a olhá-la assim, agora que ela já estava bem na casa dos trinta, depois de ter tido uma filha e de há muito as suas belas e esguias linhas da sua juventude não serem mais de que uma ténue memória?

Ela baixou o olhar para não o ter de encarar. Remexeu o açúcar do café o mais lentamente que pôde, bebeu-o de um só trago. Mas ao baixar de novo o olhar, deteve-se nas mãos dele, solenemente pousadas e sobrepostas na mesa. Eram mãos grandes, calejadas, dedos longos e grossos. Deu por si a imaginar aquelas mãos a agarrarem-na. Acariciando-a suavemente num instante, apalpando-a possessivamente noutro. Intrometendo-se por dentro da sua roupa até encontrarem a sua pele. A rasgarem-lhe as meias num acesso de impaciência.

Um pires com a conta aterrou na mesa, fazendo-a regressar à lucidez. Reparou com alívio que ele já se tinha ido embora. Mas que insanidade temporária fora aquela que a fez desabar pelo olhar de um completo estranho e pensar em coisas inadmissíveis para uma mulher responsável e racional como ela? O ar fresco da rua ao sair ajuda-a a arrefecer os ânimos e tranquilizar o espírito.

Mas eis que ela o encontra. E sem dizer nada, ele leva-a para um recanto bem escondido e encosta-a à parede. Em menos que nada, as mãos deles fazem todas as coisas que ela tinha imaginado minutos antes. Ela sente-se impotente diante do poder dele, das mãos que a invadem, dos beijos que a cobrem e não pode fazer mais nada do que deixar-se levar naquela loucura. Um arrepio atinge-a assim que ouve as meias dela rasgarem-se. Ela também já sente nas suas mãos o membro dele, enorme e retesado, pronto a invadi-la. Enquanto beija-lhe o pescoço, ele avança para tal...

Who do you think you are, running around leaving scars...

Com o impacto de um estrondo, o toque do telemóvel interrompe o enlevo. 
- Estou sim, mãe?
- Maria Helena, desculpa lá estar a interromper o jantar, mas a Leonor queria falar contigo antes de ir deitar.
- Não faz mal. Olá, querida.
- Olá, mamã.
- Portaste-te bem em casa da avó?
- Portei-me. E agora vou-me deitar.
- Está bem. Dorme bem, querida. Boa noite e um beijinho.
Ele aproxima-se e diz:
- Boa noite, Leonor.
- Boa noite, papá. 

Quando a chamada termina, ela volta-se para o marido.
- E agora, continuamos com o nosso plano para esta noite?
- Se ainda quiseres...
- Já há muito que não me olhavas para mim assim.
- Isso é o que tu julgas. Não costumas é reparar.
Desta vez, é ela que o encosta à parede. 
- Muito bem, vamos continuar...  


terça-feira, 24 de abril de 2012

Vermelho-Cravo

Caro Sr. José:

Antes do mais, muitos parabéns. Que giro fazer anos a 25 de Abril. Nem imagino como terá ter sido viver a revolução logo no seu dia de anos. E nem uma melhor prenda que um país mais livre. Infelizmente, muitos dos ideais que inspiraram tão nobre revolução não têm sido muito bem aplicados e alguns mesmo parecem esquecidos. Mas dá-me arrepios haver gente saudosa dos tempos do Salazar...por muita ordem e disciplina que houvesse nesse tempo e que, admito, falta actualmente, nem quero imaginar como seria viver num regime tão hostil e castrador e ao mesmo tempo tão pacóvio e paternalista. Felizmente, não nasci nesse tempo.

Também sei que desde há três anos, você não tem muita paciência para celebrar o seu aniversário por este ser perto do aniversário do falecimento da sua mulher, a Dona Celeste, a quem uma doença fulminante e impiedosa levou muito antes do que seria justo ser a sua hora. Tenho imensa pena de não poder tê-la conhecido com mais saúde, pois infelizmente a doença atacou-lhe poucos meses depois de termos sido apresentados. Mas durante esse curto espaço de tempo, deu para perceber todo o excelente carácter e força de espírito dela, que tanto revejo no Ricardo. Bem como a felicidade da vossa união, algo que infelizmente não aconteceu com os meus pais.

Mas eu gostei igual e imediatamente de si. Não levei a mal o seu embaraço nem o seu pouco à-vontade quando o Ricardo apresentou-me como namorado. Era natural, pois sei perfeitamente que o privilégio de duas pessoas do mesmo sexo poderem ter uma relação aberta é um privilégio possível (e minimamente aceite) apenas a partir da minha geração, depois de tanto tempo em que foi algo condenável e impensável. E também sei que uma coisa é saber que um filho gosta de homens e fazer as coisas lá por conta dele, longe da vista, outra é ter um filho a apresentar-lhe um genro em vez de uma nora, fundamentando-se assim a sua orientação. Mas o simples facto de que, apesar da sua relutância, você tenha aceitado sem nenhum juízo de valor, significou muito. Para mim, mas sobretudo para o Ricardo. Ele nunca disse nada mas sei bem que ele temia a sua desaprovação.
E seja como for, não sei se o José ficou com uma boa impressão de mim, mas fiquei com boa impressão sua. Vi logo que era um homem justo e honesto, afável mas firme, que foi um exemplo para os seus filhos e dei por mim a desejar ter tido um pai assim. Aliás, neste três anos de convivência em que tenho sido acolhido pela vossa família, dou comigo com pena de não ter crescido no meio de uma família assim tão unida.

Por essas e por outras, é que resolvi estar mais em contacto com o meu pai. Bem sei que ele pode ter sido um fraco marido e um pai sofrível, e ter-nos deixado quando eu era ainda um miúdo, mas é o pai que eu tenho e mesmo assim, há pais piores. E também se fosse hoje, muito provavelmente os meus pais nunca se teriam casado, mesmo com um filho em comum. Cada um iria à sua vida, acordando-se apenas as responsabilidades imperativas e tinha-se poupado muita chatice. Mas os tempos eram outros, e com o azar da minha mãe ter ficado logo grávida, não havia então outra alternativa senão casarem, mesmo que era certo para todos que era um enlace destinado a fracassar. Assim que cresci o suficiente para perceber isto tudo, deixei de sentir tanta animosidade para com o meu pai, e a aproximar-me gradualmente dele, ainda que um telefonema todas as semanas e um almoço a cada dois domingos seja o nível de contacto mais que suficiente para ambos, pelo menos por agora.

De certa forma, a família com que cresci foi só a minha mãe e eu, se bem que sempre me dei bem com os meus tios e as minhas primas, mas eles também tinham as suas vidas. Felizmente, a minha mãe nunca dependeu do meu pai, estabeleceu o seu próprio negócio e não se poupou a esforços para criar o filho sozinha. Ela apercebeu-se, ainda antes de eu próprio, de como eu era e foi a pessoa menos espantada do mundo quando me assumi. O meu pai, ao que parece não gostou muito e ainda tem as suas reservas, mas aceitou, quanto mais não seja porque não se sentia no direito de fazer qualquer objecção, já que tinha estado ausente desde os meus oito anos.

Felizmente, não tenho sofrido muito com a discriminação, até que faço por ser discreto quanto a isso. Ser homossexual é apenas uma parte daquilo que eu sou, não é só isso que me define. Uma vez, na rua, três mânfios rodearam-me, exclamando "ó paneleiro", e só escapei de boa porque me lembrei de pegar num canivete que eu tinha no bolso e de o encostar à braguilha do jagunço que ia para me agarrar, que foi remédio santo. Mas a maior discriminação que eu sofri foi por parte de alguém do meu sangue.
A minha mãe diz que a minha avó ficou mais amarga depois da morte do avô, mas não me recordo de uma manifestação de afecto por parte dela. Sei que é horrível dizer isto de uma avó, mas nunca conheci ninguém tão ruim como as cobras. Não merecia os filhos que tinha. Há tanto velhote abandonado por aí, de quem os filhos não querem saber nada, que se tivessem filhos como a minha mãe e o meu tio, dariam graças infinitas a Deus e a todos os anjos e santos. Tanta vez que a minha mãe e o meu tio deixavam tudo para acudir à minha avó à menor aflição, que fizeram mais do que a obrigação deles, e mesmo assim ela só sabia era se queixar e dizer mal de tudo. E sempre que podia, culpava a minha mãe por não saber agarrado o marido e manter o casamento e de ter tido "um filho maricas". Não sei como é que nunca tive coragem de a confrontar e dizer-lhe umas boas verdades. Não o fiz porque, como dizia a minha mãe, por vezes é melhor manter a calma e perceber a pequena dimensão de certas pessoas. Sei que não é nada bonito dizer isto, mas quando ela morreu, o meu pesar não foi muito maior que a minha sensação de alívio.

Apesar de tudo, não me arrependo de tudo quanto eu passei. Não houve nenhuma cabeçada na parede nem pé na argola que não me desse uma lição e me fizesse um bocadinho melhor como pessoa. Ainda tenho um longo caminho a percorrer até ser um modelo de virtudes, mas espero chegar lá perto com o tempo. E ter vivido num quadro familiar tão disforme só me fez apreciar ainda o facto de ser tão bem acolhido no seio da vossa família. Tal como este país, que descobriu a liberdade com o tom vivo do vermelho-cravo a romper o cinzento, vai fazendo o seu caminho entre passos à frente e passos atrás, entre saltos e trambolhões, mas sempre com esperança no futuro, também eu sigo assim. Atravessando pelos azares mesmo quando deixem graves feridas e apreciando as bênçãos quando elas surgem. Vistas bem as coisas, haverá outra forma de viver?

Muitos parabéns e feliz 25 de Abril.

Filipe