quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Labirinto do Luto

Mano:

Quando te candidataste ao teu emprego na Noruega, lembro-me de que apesar de estares muito entusiasmado com a ideia, tinhas um ar algo pessimista. Chegaste a dizer que tinhas um pressentimento de que algo terrível estava para acontecer. Logo tu que és um homem das ciências e que nunca foste de pressentimentos antes. Mas fosse como fosse, era uma sensação forte demais para ser ignorada. E a verdade é que pouco tempo depois, a nossa Mãe seria levada pela doença que a consumiu bem mais depressa do que qualquer um de nós poderia imaginar.  
O Filipe teve um pressentimento desses nas nossas férias na Turquia. Estávamos no meio da beleza arrebatadora de Pamukkale quando reparei que ele estava a chorar. Foi então que ele me disse: "Normalmente quando estou assim tão feliz, é porque algo de mau vai acontecer." Claro que eu tentei animá-lo, disse-lhe para não ser parvo e aproveitar o momento esplendoroso que vivíamos naquele lugar e ao longo da nossa viagem há tanto tempo ansiada. Mas a verdade é que o pressentimento dele estava certo.  

A minha profissão e a minha maneira de ser levaram a que eu adoptasse uma postura forte e compassiva desde a hora em que o Filipe recebeu a notícia da morte do pai dele até ao regresso do funeral. Mas como se eu não puder ser profano e pouco profissional contigo, não posso ser com mais ninguém aqui vai: fica mais uma vez provado que esta vida é uma merda, em que num momento uma pessoa está viva e noutra já não está.
Eu mal conhecia o pai dele, se trocámos uma dúzia de palavras já foi muito, mas isto tudo acabou por me afectar mais do que eu pensava. Não só pelas memórias do que passámos com a nossa mãe, mas também por ter sido algo tão repentino e burlesco: ele tinha acabado de lavar o carro, abaixou-se para pegar no balde e de repente cai para o chão, como um robô que ficou sem pilhas. E se comigo, foi o que foi, imagina o Filipe logo agora que estavam a dar-se finalmente bem e a tentar recuperar o tempo perdido. Depois de ter crescido sem pai, ele tinha procurado ao longo da vida uma figura paterna: na mãe, no tio, no nosso Pai e finalmente começava a finalmente a encontrá-la no verdadeiro pai. Com os ressentimentos e os arrependimentos arrumados, estavam lentamente a criar uma relação de pai e filho, que agora terminou abruptamente. Ele vê-se de novo órfão de uma parte de si que nunca conseguiu verdadeiramente compreender. Como é óbvio, dou comigo a comungar da sua dor, tal como ele esteve sempre presente quando a Mãe morreu.

Eu digo ao Filipe para chorar antes pelo bom que conseguiram alcançar, por terem tido a oportunidade de crescer e reaprender a relação e olharem um para o outro sem ressentimentos do que pelo que ele perdeu e nunca reparar e aquilo que podia ter sido. Mas a verdade é que também tenho muita pena de que este laço tenha sido rasgado assim tão bruscamente quando demorou tantos anos a ser remendado. E não estava nada à espera de reviver esse labirinto do luto tão cedo, só nós é que sabemos o quanto custou da outra vez. A vida é mesmo uma merda, mas tudo o que se pode fazer é continuar a viver.
O Filipe vai caminhando pelo labirinto, sem saber bem por onde seguir rumo, com dias maus onde a dor da perda é dilacerante demais para manter o mínimo rasto de serenidade e com dias mais positivos onde o sofrimento é relativamente suportável. E eu sigo ao lado o dele, tentando guiá-lo tal como eu, tu, o Pai e a Mónica nos guiámos uns aos outros em cada passo rumo a uma saída que parecia estar sempre longe demais.
Ontem o Filipe parecia estar num dia mais ou menos calmo quando o encontrei a chorar no sofá. Quando me sentei ao lado dele, ele pegou-me na mão e disse que queria casar comigo. Fui-lhe amparando os golpes de insistência, dizendo que estava a ser motivado pela emoção, que estava de cabeça quente, que nós já temos um compromisso sério e não é um papel passado que o torna mais válido e lá consegui demovê-lo.

Mas só aqui para nós, não foi nada que eu próprio não me tivesse ocorrido. Pode ser verdade que um papel passado não valida mais o nosso compromisso de partilharmos as nossas vidas, também é verdade que se cumprimos os mesmos deveres também devemos beneficiar dos mesmos direitos, já que no nosso país a legislação está felizmente mais avançada que a mentalidade. Mas sobretudo porque nunca sabemos o que nos espera a  cada curva do percurso e se algo nos acontecer a um de nós, o outro merece não ter de percorrer desamparado o sinuoso labirinto do luto.

Um abraço,

Ricardo         
  

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