quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Números Negativos

Quase que não reconhecia a Patrícia, quando a reencontrei no restaurante. A longa trança de cabelo preto tinha dado lugar a um penteado requintado. Envergava um simples mas vistoso vestido lilás e outrora era raro vê-la sem calças de ganga. E em vez de umas simples argolas, uns caríssimos brincos com brilhantes nas orelhas. O almoço foi preenchido com conversas triviais, como vais, o que é que tens feito, o que tem chovido hoje. E eu pensava que já a tinha esquecido a Patrícia, que ela já não significava nada para mim. Até que no instante da despedida, beijei-a e quando dei por mim, tinha-a levado para minha cama e possuído como nunca o fizera.

Quando imaginava o nosso reencontro, tinha-me imaginado indiferente, moderadamente alegre ou até irado. Imaginei tudo menos do que tê-la aqui, deitada na minha cama, depois de termos voltado a fazer amor com a mesma voracidade de quando éramos mais novos mas com a arte que a nossa idade foi adquirindo. A idade fez-lhe bem, amadurecendo-lhe graciosamente a beleza e perfumando-a com uma feminilidade sensual que não conhecia. Agora que a tenha rodeada nos meus braços, não consigo sentir nada. Nem raiva, nem rancor, nem sequer desejo. Só consigo demorar-me no prazer de ter redescoberto uma sensação há muito perdida.
- Fala-me do teu ex-marido.
- Que raio de altura para eu te falar nele.
- Estou interessado. Quem foi o homem que te conquistou.
- Estás muito enganado. Não demorei a perceber que não iria ser nenhuma actriz famosa e que não ia lado nenhum. Mas já era tarde demais e tinha vergonha para voltar. Entretanto conheci o Jorge e ele apaixonou-se por mim. Sim, casei por interesse. Ele tinha dinheiro e estabilidade, e eu não. Eu gostei dele, mas nunca o amei. Mas ele sim, e achava que era suficiente. Para compensá-lo fui a esposa que ele esperava que eu fosse. Foi o papel da minha vida, representar essa mulher que não era eu. Uma mulher que parecia feliz e apaixonada pelo marido maravilhoso. Uma mulher bem vestida, sofisticada e educada, tão radiosa como as jóias que usava.

Ela senta-se na cama, os braços cruzados sobre os seios e continua:
- Eu tentei amar o Jorge. Mas não conseguia. Sobretudo na cama, era um suplício. O pobre percebia muito pouco disso, e se não o tivesse experimentado antes contigo, nunca saberia como poderia ser maravilhoso. Ainda assim, tentei o máximo que pude. Quando engravidei, pensei que um filho melhorasse as coisas. Mas o nascimento do Henrique só veio confirmar que estava a viver uma mentira. Ao ponto de também o Jorge ter deixado de comprar a ilusão. Ainda assim foi generoso comigo no divórcio. Vai-me dando dinheiro que dá para eu viver mais ou menos até conseguir um emprego e ganhar para mim, e eu fico com o Henrique durante a semana.

Levanto-me também e beijo-lhe as costas mas ela continua imóvel. De repente, desata a chorar:
- Patrícia, o que se passa?
- Tu odeias-me.
- Antes de voltar a ver-te, talvez. Mas agora, podes ter a certeza que não.
- Mesmo assim, é tarde demais. Estás bem na vida, vais-te casar e eu vim atrapalhar-te.
- Não sei se me importo de teres vindo atrapalhar-me.
- Mas vais-te importar.
Ela sai da cama e começa a vestir as cuecas e o soutien.
- Mas afinal porque é que me ligaste? 
- Porque tinha a ilusão que eu podia voltar atrás, voltar para ti, ficar contigo. Seres um pai para o Henrique.
- E se eu te disser que tudo isso é possível? Que vou deixar a Laura e que fico contigo, que eu ainda te amo.

Nestes doze anos, extingui o máximo que pude a Patrícia da minha memória e o que sentia por ela do meu coração. Mas uns resquícios, bem escassos, perduravam.
- Não me interessa mais o passado. Agora estás aqui. Podemos começar do zero.
- Mesmo que fosse possível começar do zero, ainda há antes dele os números negativos.
- Eu bem queria que fosse possível, mas agora sei que não serias feliz comigo.
- Talvez prefira ser infeliz contigo do que feliz com outra.
- Eu conheço-te, Paulo. Não há nada que queiras mais do que a felicidade. Até mais do que me queres a mim.
- Já que falaste em números negativos, eu lembro-me que em Matemática nos ensinaram que menos por menos dá mais?
- Nós não somos uma multiplicação. Somos uma adição e isso só daria um número mais negativo.

Eu próprio começo-me a vestir. Ainda estou a abotoar a camisa quando ela, já toda composta, vem-me dizer adeus e dirige-se para a porta.
- Patrícia, espera!
- Paulo, por favor, não insistas.
- Tudo bem, suponho que tens razão. É melhor eu seguir de novo o meu caminho e tu o meu. Só queria saber se tens algum plano para o resto da tarde?
- Não, nada de especial.
- Então, fica só para mais uma explicação de Matemática.
Ela vê a chuva de Outubro a bater na janela, depois olha-me nos olhos e murmura:
- Tu nunca foste muito bom de números, pois não? O teu jeito foi sempre com as letras.   


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Meu Lar Longe Do Lar

Minha Ju:

Como rapariga engenhosa e prática que és, foste tu que tiveste a ideia de comprarmos uma cama que se divide em duas no IKEA para o nosso quarto. Para fazer amor ou simplesmente para quando nos apetece apenas dormir juntinhos, juntam-se as camas e coloca-se o grande edredon. Quando um de nós está doente, quando eu quero fazer uma pausa de acordar com os teus longos cabelos esparramados na minha cara como se tivesse emergido de uma poça de algas, ou quando te fartas de acordar num cantinho da cama enquanto eu ocupo 95% do território "camal", separam-se as camas e cada um dorme para seu lado. Mas mesmo com as tuas algas capilares e todas as vicissitudes de um leito partilhado, prefiro acordar contigo ao meu lado. Cheguei ao ponto em que me sinto esquisito se acordo sozinho, como se não tivessem sido bem mais os despertares ao longo de mais de três décadas da minha vida em que só estava eu na cama.

Superada a nossa primeira crise de tédio conjugal, que não passou de uma tragicomédia encenada pelas nossas mentes inquietas, pelos nossos egos mutantes e pela nossa inexperiência amorosa, rumámos alegremente para Londres, à nossa primeira etapa das nossa férias. Nada como uma mudança de ares e um mundo de descobertas para reapreciarmos a nossa companhia mútua. Eu nunca tinha ido ao Reino Unido antes, por isso fui descobrindo a riqueza da capital da Velha Albion enquanto tu reciclavas as memórias da tua última visita, quando ainda eras adolescente e as Spice Girls e os Oasis eram a banda sonora dos nossos dias. E claro que demorámo-nos nas instalações olímpicas, assistindo às provas nos ecrãs gigantes já que o único evento que conseguimos ver in loco foi o Brasil-Turquia em voleibol feminino. Acho que nunca torci tanto por nenhum outro país que não Portugal, mas a euforia da torcida dos teus contemporâneos era altamente contagiante. Para fechar com chave de ouro, no dia antes da nossa partida, quando já me conformava em celebrar apenas as medalhas do Brasil, eis que aqueles rapazes da canoagem arrecadaram uma medalha para Portugal. Depois cada um de nós seguiu sozinho para a segunda etapa das férias, rumo à casa do respectivo pai de cada um. 

Chegado a casa, descubro que temos uma nova habitante. O meu pai seguiu o conselho de um amigo e decidiu alugar o quarto do Ricardo. A hóspede actual é uma finlandesa chamada Minna, que está a tirar um dos cursos de Verão da universidade, e é a típica nórdica, alta, loira e calada. Isto é, era calada até eu chegar. Como já te contei, quando cheguei à Noruega, por ser português (que lá é suficientemente exótico) e gostar de conversar, tive logo muito mulherio interessado. Pois o meu charme infalível fez das suas de novo junto de uma nórdica. Enquanto a Minna estava sozinha com o meu pai, era só bom dia e boa tarde, mas comigo estava sempre pronta para conversar e a pedir-me para ir passear com ela. Nem sequer se desmotivou por aí além quando eu disse que eu tinha namorada. Felizmente que a Mónica também está de férias e ofereceu-se para levá-la a passear pelas redondezas e deixei de estar no radar da Minna. Além de que parece que ela agora tem um brasileiro (nem de propósito!) debaixo de olho.

Como sempre é bom voltar ao meu país e à casa onde cresci. É bom ver o meu pai animado depois de tantos tempos de melancolia, a Mónica a construir o seu rumo (finalmente conheci o homem-mistério, o Salvador) depois de ter dado tantas voltas no mesmo eixo e o Ricardo feliz numa relação sólida quando parecia destinado à solidão. É bom sentir o espírito da minha mãe, que parece-me sempre mais próximo aqui, nos lugares e nas pessoas  que ela amou.

Mas confesso que aguardo ansiosamente o momento em volto a Oslo e regresso ao meu lar longe do meu lar, onde estás tu, as minhas coisas, as tuas coisas e as nossas coisas. E uma cama do IKEA que dá para dividir em duas e onde já me habituei a acordar junto a ti, com os teus cabelos espalhados sobre a minha cara, sob um grande edredão.

Com muitas saudades,

o teu Nelson