quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Postais de Bruxelas

Minha Cara M.:

Andas lá tu nas alturas, riscando céus e furando nuvens, enquanto te moves elegantemente pelo avião servindo os passageiros. E eu aqui na terra, a pensar em ti. Ainda que eu espere por ti mas não desespere. Nunca fui dado a estoicismos, nem ando a suspirar sobre quando vens ou deixas de vir. Sigo a minha vida com o trabalho, as idas ao ginásio e à piscina e saídas com amigos. Por vezes, conheço outras mulheres, e chego a sair com elas. Ainda não me deitei com mais ninguém desde que te conheci, mas se chegar uma altura em que o ferrão da solidão doer demasiado, não te digo que isso não pudesse acontecer. E não te censuraria se o mesmo te acontecesse. O céu pode ser um local muito solitário.
Já pensei muitas vezes porque é que não termino com tudo e te deixo aí em cima, livre para ir mais além e deambular por outros lugares, enquanto procuro alguém para amar em terra firme. Mas o teu feitiço ainda está tão entranhado em mim e alimento esta esperança que tu sejas a mulher da minha vida.
Devia saber que me iria apaixonar por ti quando te vi. Que tu eras perigosa e sabias como dissipar o meu orgulho de macho. Que tu sabias como amar um homem e deixá-lo perdido pela tua pele. Que tinhas um raro discernimento sobre os mistérios do universo masculino (dizias tu que foi por cresceres com dois irmãos mais velhos e um pai que sabia dançar). Mas não me arrependo. Até porque sou feliz mesmo sem ti.
Claro que quando tu me ligas a anunciar que chegaste cá, e apareces em casa - por vezes ainda com a tua farda de hospedeira - e envolvemo-nos em abraços, é fácil imaginar que a felicidade completa só existe quando te tenho a meu lado, quando te tenho na minha cama. Mas prefiro pensar que tu és apenas a cereja em cima do bolo, o ouro sobre o azul.
Agora fazes o voo para Bruxelas e volta e meia, envias-me postais. Do Atomium, da Grand-Place, do Parlamento Europeu, da Godiva. Sem nada escrito ou com mensagens telegráficas. "Os melhores chocolates do mundo", "Vi o Durão Barroso", "Lanche num pequeno bistro". Sempre foste muito sintética. Ou melhor, sempre foste de falar pouco e dizer muito. E é esta é tua forma de dizer que ainda pensas em mim.
Por isso, podes continuar aí nas nuvens, toda elegante e profissional na tua farda. Manda-me postais de todos os sítios onde fores com meia dúzia de palavras rabiscadas no verso. Quando aterrares de novo no nosso país, eu estarei aqui para te acolher. Talvez quando correres o mundo, hás de sentir que o teu lugar é aquele de onde partiste e queiras um dia vir para ficar. Comigo. É este o meu sonho inconfessado
Mas pensa também que um dia, a altura e a distância que nos separam poderão ser longas demais. Ao ponto de que estejas também longe dos meus pensamentos. Talvez aí seja por outra que eu anseie por ver chegar. Se o céu é um lugar solitário, a terra também pode ser.
Mas por agora, voa por esse céu azul. E quando voltares, traz-me um chocolate. E de preferência, saudades minhas encafuadas na bagagem.        

Com saudades,

S.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Olhando pelo retrovisor

Meu caro irmão:

Se até a mim pareceu uma cena surreal, imagina para o nosso Pai. Vistas bem as coisas, não devem ter sido muitos homens que passaram uma semana de férias na Manta Rota com o filho e o namorado deste. Claro que o Pai foi sempre muito cordial com o Filipe e a maior parte do tempo até conseguiu abstrair-se do cenário insólito. Eu e o Filipe também concordámos em dormir em quartos separados e em não trocar manifestações de afecto diante dele, aliás em público somos sempre bastante discretos, preferimos sempre deixar isso para quando estamos os dois a sós.
No entanto, havia momentos em que o semblante do nosso Pai dizia tudo. Olhava para mim e para o Filipe, e era notório o desconforto. Estaria ele a imaginar com desagrado o filho dele agarrado aos beijos com outro tipo? Ou a desejar que a Mãe ainda fosse viva para lhe dizer como falar e agir diante desta situação inédita?
Sei que para ele é difícil. Ele cresceu a pensar que homossexualidade era algo simplesmente inconcebível e imagino que deve ter sido muito duro saber que um filho dele gostava de homens e que foi preciso muito esforço para compreender. Claro que ele e a Mãe sempre souberam, por isso posso dizer que nunca saí do armário porque nunca cheguei a entrar. Se calhar já sabiam antes de ti, que reparaste quando víamos as "Marés Vivas" e enquanto te babavas com a Pamela Anderson, eu entusiasmava-me tanto com o David Charvet que notaste o alto nos meus calções. Por isso, já significa bastante para mim que o Pai me aceite e me compreende, mesmo que não goste mas a isso não é obrigado.
Já achei extraordinário o Pai ter aceitado em vir. Quando lhe propus ir connosco foi naquela da brincadeira, imaginando que ele iria dizer que não. Não sei bem porque terá dito sim, mas acho que foi porque já não ia Algarve desde que a nossa Mãe morreu. Eles tinham retomado a ideia de ir fazer férias no Algarve nos dois Verões antes da morte dela, agora que os três filhos estavam foram de casa, e que tinham redescoberto a nova dinâmica de serem só eles os dois. Pensavam que passariam o resto dos seus dias serenamente os dois lado-a-lado, gozando a reforma, acolhendo as visitas dos filhos, ansiando a chegada dos netos por ainda uns bons anos. Foi um sonho que foi muito duro de abdicar para o Pai, ainda mais do que o seu desejo secreto de que eu estivesse só "numa fase". Mas que ele tinha de abdicar para continuar a viver em paz.
Partimos a meio da noite, como fazíamos quando íamos para o Algarve em putos, lembras-te? Para mim essa a melhor noite do ano, quando os pais nos acordavam, vestíamo-nos à pressa, descíamos as escadas com as nossas mochilas prontas a serem engolidas pelo porta-bagagens do carro. Depois sentávamo-nos no banco de trás e como sempre eu ia ao meio. De um lado, sentavas-te tu, que não tardavas em adormecer, e do outro, a Mónica, que a Mãe levava sempre com mil cuidados para não acordar, sempre a dormir imperturbável na cadeirinha dela. Também era costume a Mãe adormecer passado um bocado. Mas eu ficava acordado e olhava fascinado para a estrada a ver a noite transformar-se em dia. Primeiro o escuro da noite apenas iludido pela luz dos faróis, depois um rasgo vermelho do sol nascente, depois a metamorfose num céu azul e chegávamos a meio da manhã, com o cheiro a mar a insuflar-nos os pulmões. Como se a nossa cidade fosse o país da noite e o Algarve o país da manhã e o carro tivesse cruzado clandestinamente a fronteira entre os dois.
Na noite da partida, o Pai falou-me desse tempo, em que olhava pelo retrovisor e via-me de olhos bem abertos, fixos no horizonte da estrada enquanto os outros dormiam. E nessa madrugada, enquanto o Filipe dormia a sono solto no banco do passageiro, pareceu que os papéis tinham-se invertido. Eu é que estava a conduzir, atento à estrada, mas ao ver o Pai pelo retrovisor, vi que ele olhava fixamente em frente para o longo do céu e da estrada. Gostei de imaginar que era agora ele que se deixava maravilhar pelo encanto do nascer do sol, como se tivesse cruzado a fronteira do dia da noite com um prazer transgressor e que à chegada havia um horizonte de mar e de sal para o acolher. E que algures na aurora, a Mãe estaria lá.

Com um abraço,

Ricardo

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Frasco de Geleia

Não concordo com o que diz a personagem do Billy Crystal em "Um Amor Inevitável", que uma amizade entre homens e mulheres é impossível porque o sexo, ou pelo menos o desejo sexual, está sempre presente e acaba por estragar tudo. Acredito que é perfeitamente possível uma amizade entre homem e mulher, numa relação de puro bom entendimento e companheirismo, sem que uma eventual atracção, mútua ou unilateral, seja motivo para pôr as coisas em cheque. E nós sabemos bem disso, porque sempre tivemos mais tendência para travar amizade com o sexo oposto. Uma vez até me disseste que as tuas amizades masculinas têm sido geralmente mais verdadeiras e compensadoras que as femininas. E para mim sempre foi um pouco mais fácil criar amizade com elas do que com eles. E sim, já me senti atraído por algumas das minhas amigas e já formulei muitas questões começadas por "e se...?" Porém, como ambos sabemos apreciar o valor precioso de uma boa amizade e já sofremos com a desilusão daqueles que se revelaram serem amigos e amigas da onça, sabemos o quanto custa quando uma amizade se estraga pelos mais variados motivos. E que por vezes, não vale a pena pôr mais incógnitas na equação.

Claro que a atracção é um assunto que poderá complicar, e bem, as coisas. Mas nesse caso, das duas uma: ou se arrisca e tenta-se conquistar o outro, avança-se para saber se vale a pena enveredar por uma relação amorosa ou sexual; ou então não se arrisca, ou porque o outro deixou bem claro que não sente o mesmo e não vale a pena, ou porque não se está para chatices, ou então porque as coisas estão bem como estão e se algo não está partido, não é preciso arranjo. Sou tentado a dizer que a primeira hipótese seja mais tipicamente masculina e a segunda mais tipicamente feminina.
Atrever-me-ia até a dizer que se um homem diz "eu não quero algo mais porque pode estragar a nossa amizade", regra geral quer dizer "não estou assim tão interessado em ti, não há hipóteses de sermos mais que amigos, desculpa lá." Se algum já te disso isso e se ficaste com a pulga atrás da orelha, tiveste certamente razão. Geralmente, se um gajo está mesmo interessado, seja em termos de amor ou de simples tusa, quer lá saber se a amizade pode-se estragar ou não. Quem não arrisca, não petisca e lá vai disto.

Mas eu devo ser uma excepção que confirma a regra. Primeiro porque sempre fui um solitário e sempre que sentia o menor sinal de afecto e empatia da parte de alguém, é como se tivesse achado algo inestimável e precioso. Depois porque muitos, senão a maioria, não conseguem ou não querem conhecer o meu verdadeiro eu, para além da minha superfície peculiar, por isso sempre que alguém tem a coragem e a inteligência para o fazer, eu sei que essa pessoa vale a pena. Se há coisa que me arrependo na minha adolescência, foi a de me preocupar com gente que não me valorizava e de quem não valia a pena perder o meu tempo. Por isso, uma amizade para mim vale mais que ouro e tenho pena que quase todas as minhas amizades tenham grandes interregnos pelas mais diversas circunstâncias da vida. O que vale é que eu sei que quando reencontro amigos de verdade, é como se o tempo não tivesse passado e os sentimentos tivessem estado arrumados só para melhor se conservarem, como o vinho na pipa. É ai que eu me lembro que entre amigos pode haver muitas vírgulas mas nunca um ponto final.

Daí que o teu namorado pode ficar descansado em relação a mim, embora eu duvide que ele tivesse visto em mim o mais mísero motivo para desconfiança. Sim, sou gajo, tenho olhos na cara, sei que és linda. É preciso ser-se cego e atrasado para não te achar atraente. Ele é um grande sortudo em ter-te como namorada e quem me dera um dia encontrar alguém como tu. Mas tudo isso é de importância irrisória, diante do que a tua amizade vale para mim. Aliás, fico muito feliz por teres encontrado finalmente um príncipe depois de tantos sapos que tiveste que beijar. A bem-dizer, só o conheço pelo que me contaste dele, a única e muita breve ocasião em que o encontrei pessoalmente não deu para tirar mais conclusões. Mas para mim, basta-me reparar que ele te faz feliz, e que ele tem estado lá, à altura da situação, quando precisas dele.

Uma das minhas frases feitas preferidas é uma de Vinícius de Moraes: os amigos não se fazem, reconhecem-se. Nem sempre é verdade, às vezes leva tempo, mas já houve algumas pessoas que mal as conheci, soube logo que estava ali um amigo ou uma amiga. E foi o que se passou connosco. Pode ter sido o destino, o acaso, a astrologia (somos ambos nativos de Touro), ou sei lá mais o quê, mas não interessa. Sob uma luz mais analítica, poder-se-ia dizer que não temos assim muitos gostos em comum, que temos mais pontos de discordância que de confluência. Até pode ser verdade, mas isso não impediu que nos soubéssemos adaptar ao ritmo um ao outro. E talvez seja por isso que, para cada um de nós, a companhia do outro fosse especialmente interessante e enriquecedora.

Após um ano de convivência frequente, chegou a altura de seguirmos rumos diferentes. É possível que passe muito tempo sem nos vermos e que as voltas da vida coloquem uma grande distância entre nós. Se assim for, só me resta arrumar-te no espaço do meu coração onde guardo os amigos que fiz ao longo da vida e de quem tive de dizer adeus. Onde há sempre espaço para mais um, onde os sentimentos ficam conservados para não perderem o sabor. Espero que também faças o mesmo.
Pensa que será como aquele frasco de geleia na prateleira mais alta da dispensa. E que um dia, havemos de pegar num escadote, subir até lá, trazer o frasco cá abaixo e barrar a geleia no pão, para descobrir que continua saborosa como sempre.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

E é Isto

- A nossa história de amor é horrível.
- Terrível!
- Pior que telenovela mexicana.
- Pior que um telefilme melodramático.
- Quer dizer, não é bem melodramática. Mais estilo comédia romântica.
- Sim, comédia romântica mas muito fraquinha.
- Fraquinha, mas é a nossa história.
- Pode não ser grande coisa, mas é nossa e de mais ninguém.
- Mas a bem dizer, ainda agora a história começou a sério. Só estamos juntos há cinco meses.
- Mas no fim de contas tudo começou há catorze anos.
- O amor é que foi há cinco meses.
- Então não te lembras que me disseste que estavas apaixonado por mim desde os teus dezassete anos?
- Mas não era amor a sério. Quero dizer, era, mas era uma coisa platónica, como quem quer um Ferrari e sabe que nunca vai ter.
- Genial, comparares-me a um carro.
- Desculpa lá, mas era mais ou menos assim.
- Além de que tu me tiveste. Perdi a minha virgindade contigo.
- E eu a minha contigo. Sim, tens razão. Já gostava de ti desde os meus dezassete anos. Tu é que não gostavas de mim.
- Claro que gostava, senão tinha dormido contigo.
- Mas tu gostavas era do Diogo. Foi ver-te voltares para ele logo a seguir àquela noite.
- Não foi bem logo a seguir.
- Mas acabaste por voltar para ele na mesa. Mesmo sabendo que ele te tinha enganado.
- Pronto, o que é queres? Era uma miúda, uma autêntica totó. Valha-me Deus, eu era tão parvinha. Eu hoje olho para trás no tempo, e só me apetece dar um valente par de chapadas ao meu eu de 18 anos. Era tão queque, tão presunçosa, tão imatura…
- Tu eras a rainha do liceu. Todas as raparigas queriam ser como tu. E todos os rapazes desejavam secretamente estar contigo, namorar contigo.
- Como tu.
- Como eu. Mas tu eras do Diogo e mais ninguém. Ai de quem se atrevesse a aproximar de ti. Eras propriedade do Diogo, e contigo ninguém se metia. Ele deixava isso sempre muito bem claro.
- E enquanto isso, ele metia-se com a bimba da Catarina. E provavelmente com outras.
- Se não fosse aquela noite, eu também gostaria de voltar atrás no tempo e dar uma valente chapada no meu eu de 18 anos, por alimentar uma estúpida fantasia de que tu te poderias interessar-te um bocadinho que seja por mim e mandar o Diogo à viola.
- Isso acabou por acontecer. Naquela noite.
- Pois foi. Mas tão depressa voltaste para ele, que por vezes até imaginava que fui apenas um capricho. Que o fizeste só por ressabiamento, porque apanhaste o Diogo aos beijos com a Catarina.
- Mas não foi. Agora tenho a certeza que não foi. Aliás, no fundo sempre sabia. Mas no dia seguinte, estava tão confusa. Nem queria acreditar que o tinha feito. Que tinha perdido a minha virgindade contigo, quando eu nunca imaginei que acontecesse com mais ninguém a não ser o Diogo. Estupidamente, pensei que o melhor seria pensar que o melhor era fazer de conta que nunca tinha acontecido. Ainda por cima, uns dias depois, o Diogo veio ter comigo, disse-me que estava muito arrependido, que ia mudar, que curtir com a Catarina foi a maior estupidez da sua vida, que agora é que ele percebia mesmo o quanto eu era importante para ele, blá, blá, blá. E eu, vulnerável e confusa, acabei por perdoar e acreditar de novo na treta dele.
- E passaste o resto das férias lá no resort a fingir que não me conhecias. Tu de novo com o namoradinho e os teus amiguinhos, nas vossas festas de meninos ricos, e eu de novo a limpar as casas de banho para juntar um pé-de-meia para a Universidade.
- Eu tinha que te evitar. Falar contigo de novo só iria complicar mais as coisas. Decidi que o melhor era esquecer, mas nunca esqueci. Foi mesmo uma noite mágica, ali ao luar, pé do mar...
- Como aquela canção.
- Pois foi. Ao longo destes anos, quando pensava que tinha esquecido completamente, havia algo que me fazia lembrar em ti e naquela noite. Nem sei como é que correu tudo tão bem, quando estava nervosa. Cheia de adrenalina e raiva, mas super nervosa.
- E eu também. Eu mal queria acreditar. Só dizia para mim mesmo que só podia ser um sonho. Não podia estar a fazer amor com a Raquel Peixoto. Que a minha primeira vez estava a ser com ela. Que se aquilo era um sonho, não queria nunca mais acordar. Mas veio a manhã seguinte e chapéu. Tudo o que tinha era essa recordação. Fiquei destroçado quando em evitaste o resto do Verão. Para me conformar, ia dizendo a mim mesmo: “Ao menos tivemos aquela noite. É melhor que nada.”
- Uma vez, até me lembrei de ti quando estava na cama com o Diogo.
- A sério? Não me tinhas contado isso. E o Diogo não notou nada?
- Achas? Ele, egocêntrico como era, nunca notou nada. Nem nunca lhe falei de nós os dois. Ainda hoje pensa que ele é que me tirou a virgindade. Mas também não era difícil disfarçar. E disfarcei muitas vezes com ele...
- E comigo, disfarçaste?
- Não, contigo foi tudo real. Logo aí, devia ter visto um sinal. Eu acabei por ter relações com ele mais tarde e notei bem a diferença.
- Giro, giro, era que sem querer, quando estivesses com ele, sussurrasses o meu nome: “Francisco”.
- Não querias mais nada... Mas não era só na cama que dissimulava. Desde que por fora, eu sorrisse e fizesse o meu papel de esposa perfeita, para ele estava tudo bem.
- Nem acredito que casaste com ele.
- Nem eu. Mais que iludir o Diogo, iludi-me a mim própria. Pensando que ele tinha mudado, que tinha amadurecido, que os seus dias de playboy já estavam para trás. Durante os anos da faculdade, demos um tempo à nossa relação.
- Claro que para ele, “dar um tempo” significava “quero-me enrolar com quem bem me apetecer sem me sentir culpado”.
- Exactamente. E se bem o pensou, melhor o deve ter feito. Mas para mim foi mais naquela: ele ia para Coimbra, eu para Lisboa, estávamos numa fase nova da vida, iríamos conhecer pessoas novas, seria complicado manter a relação. Até para mim foi melhor assim. Fiz novos amigos, dediquei-me aos estudos, tive um ocasional flirt mas nada de muito sério.
- Nada de noites de tórrida e fortuita paixão, como foi no nosso caso.
- Nem pensar. Uns meses depois do fim do curso, ele veio ter comigo e parecia outro. A dizer que teve saudades minhas, que nenhuma das raparigas que conhecera por lá não se comparava comigo, que estava mais maduro e pronto a assumir responsabilidades. E todo cheio de gestos românticos, como nunca antes fizera. Como é que podia resistir? Mal ele pediu-me em casamento, já estava toda maravilhada.
- E no entanto, ele estava na mesma, só que mais matreiro. Ele sabia que serias a esposa perfeita, que assegurarias bons genes para os filhos e que te tinha como ele queria.
- Resumindo e concluindo. Casámo-nos e tivemos a Madalena. Ao fim de sete anos, apanho-o em flagrante na cama com a estagiária de vinte e dois anos, expulso-o de casa, ele faz inúmeras tentativas de reconciliação, descubro que houve outras antes daquela, eu já não acredito mais nele, mando-o bugiar, por fim ele aceita o divórcio e em pagar pensão de alimentos até eu conseguir orientar-me por mim própria, fica com a menina aos fins-de-semana. Foi muito duro voltar a viver às minhas custas, porque depois da Madalena nascer eu só trabalhei em part-time e no estado em que isto está, foi muito difícil voltar a arranjar emprego. Felizmente, uma colega de curso convidou-me para trabalhar na firma dela e as coisas por fim começam a entrar nos eixos. Mais ainda agora, que te reencontrei. Então e tu? Também tens de contar o que se passou contigo depois daquela noite, não sou só eu.
- Está bem. Ora é assim. Depois de naquela manhã seguinte teres-me cruelmente ignorado e evitado durante o resto do Verão...
- Tu queres ver?
- ...depois desse Verão, convenci-me que o que quer que houve entre nós os dois não iria mais além dessa noite. Fui também para a Faculdade, por lá tive uma namorada. Depois do curso, fui aceitando os trabalhos que me apareciam, mesmo fora da área, até ser contratado por aquele jornal.
- Mais ou menos na altura em que iniciaste o teu famoso blogue.
- Mais ou menos. Uns anos depois, iniciei uma relação séria com a Marta, como tu sabes. Ao fim de dois anos de união de facto, tivemos o Sandro. Três anos depois, vimos que a coisa já não estava a resultar, que já não havia um “nós” na relação, tínhamos só um filho em comum e quase mais nada. Simplesmente deixámos de estar apaixonados, como ela disse. A separação não tardou. Foi inevitável, mas mesmo assim custou-me imenso. Tinha investido muito nessa relação, tinha-me esforçado, tinha feito planos e foi doloroso saber que esses planos já não se iriam realizar. E sentia que tinha falhado. Os meus pais continuam felizes e casados ao fim de quase quarenta anos, e eu sempre quis algo assim para mim, alguém para amar e passar o resto da minha vida. E pensava que a Marta seria essa pessoa. Mas nós continuamos amigos, damo-nos lindamente, e não só apenas por causa do nosso filho. Aliás, ela está grávida de novo, do actual companheiro. Costumamos ir jantar com eles várias vezes, apesar da Raquel não gostar muito da Marta.
- Mentiroso. Eu gosto dela. Não me identifico muito com ela, temos muitas opiniões diferentes, mas damo-nos bem. E creio que ela também simpatiza comigo.
-  Claro. Ela sabia da nossa história. Mas continuando, a minha separação da Marta afectou-me bastante, muito mais do que eu gostaria. Ao ponto de não me sentir muito festivo quando recebi a notícia de que iam publicar o meu blogue em livro. E publicar um livro era apenas o meu maior sonho desde que aprendi a escrever. Até que surgiste de novo, numa sessão de autógrafos.
- Eu era uma das poucas pessoas que nunca tinham lido o blogue dele. Mas quando vi a foto dele na contracapa do livro, vieram-me à mente de novo as memórias daquela noite. Só conseguia pensar “Uau, o Francisco Antunes escreveu um livro.” Ele sempre escreveu muito bem, lembro-me de gostar das coisas que ele escrevia para o jornal da escola. Claro que comprei logo o livro, devorei-o de ponta a ponta nessa mesma noite e mal soube que iria haver uma sessão de autógrafos, eu tinha que ir lá. Mas era mais naquela de nostalgia, nada mais.
- Mal dei por ela, quando ela me estendeu o livro para autografar. Já tinha dado milhares de autógrafos e nem olhei quando lhe perguntei o nome. Mas assim que ouvi o voz dela, fiquei estarrecido. Lá estava ela, ao fim destes anos todos. Ainda por cima, parecia que não tinha mudado nada. Bonita como há catorze anos atrás.
- Vou fingir que isso é verdade. Já tu tinhas mudado, mas para melhor. Quer dizer, já eras giro antes, mas parecia que tinhas melhorado com o tempo. Até os óculos faziam-te parecer mais sexy. Agora é que ele estava mesmo um borracho.
- Sim, agora que era famoso e tal.
- Até parece...
- Claro que estou a brincar. Assinei com “Para a Raquel, catorze Verões depois. Um beijo, Francisco”.
- E eu julgava que o nosso reencontro ficaria por aqui.
- Eu também. Mas duas semanas, depois, numa cena melosa como aquelas que parece que só acontecem nos filmes, lá estava ela no Burger King.
- Eu tinha ido ao cinema com a Madalena e fomos almoçar ao Burger King. Ela foi brincar para uns baloiços que lá havia e uma das crianças que lá estavam era o filho dele. A dada altura, a Madalena, que tem o hábito de ir ter comigo apresentar os amigos que vai fazendo, veio logo dizer-me “Mãe, este é o Sandro.” E o miúdo, muito educado, estende-me a mão à homenzinho, diz: “Como está, passou bem?”. Achei tão engraçado. Então ele diz à Madalena: “Vou só ter ali com o meu pai, já volto.” Vejo-o a correr e quando não é o meu espanto quando vejo ele a ter contigo a chamar-te pai.
- Igualmente espantado, fui ter contigo, pusemos a conversa em dia. E como quem não quer a coisa, perguntei-te se queria almoçar comigo um dia destes.
- Combinámos no sábado seguinte, uma vez que a Madalena ia ficar com o pai e o Sandro com a Marta.
- Sendo que o que era para ser só um almoço amigável, mas acabou por ser dois dias de paixão, a recuperar o tempo perdido. E foi ela que começou, vejam lá!
- Eu não sei o que me deu. Só sei é que já há três anos não tinha sexo. Pensava que o sexo não me fazia falta. Mas foi revê-lo, tão bonito e atraente, que percebi que não era bem assim. Olhem, atirei-me e, por uma vez da vida, não quis saber do resto. Foi como se estes anos não tivessem passado. Quero dizer, senti que os anos tinham passado, já não éramos miúdos, éramos adultos. Mas o que tinha sentido naquela noite, voltei a sentir. 
- E eu também. Ao longo destes anos, dava por mim a pensar em ti, naquela noite, em onde e como estarias então. E ao rever-te, foi como se nunca tivesse deixado de estar apaixonado contigo. E cinco meses depois, estamos assim.
- Pois estamos. Cada um ainda mora na sua casa, cada um ainda faz a sua vida, mas sempre que podemos, encontramo-nos.
- Seja para uma saída romântica ou uma sessão de sexo escaldante.
- Mas não pensem que tem sido um mar de rosas. Este homem por vezes irrita-me profundamente, dá-me mesmo cabo da paciência.
- Ui...E tu também não és uma santa. Mas mesmo quando te zangas, continuo a gostar de ti.
- É chato quando nos zangamos, mas no fundo, prefiro ralhar do que reter tudo cá dentro, como quando eu estava com o Diogo. Pelo menos, sinto-me viva. A princípio, pensei que a Madalena iria estranhar, mas qual quê, está felicíssima, já adoptou o Sandro como irmão. Aliás, praticamente desde que começou a falar que me pedia um mano.
- Não sabemos onde isto vai dar, se vai ser para durar. Mas até agora, não tem corrido mal. E eu também.
- Eu também.
- É como se uma premonição se realizasse. Full circle.
- Absolutamente. E é isto.
- E é isto. Como vêem, a nossa história é toda melosa e foleira, uma comédia romântica muito fraquinha e cliché.
- Pois é. Mas é a nossa história.