quinta-feira, 1 de setembro de 2011

E é Isto

- A nossa história de amor é horrível.
- Terrível!
- Pior que telenovela mexicana.
- Pior que um telefilme melodramático.
- Quer dizer, não é bem melodramática. Mais estilo comédia romântica.
- Sim, comédia romântica mas muito fraquinha.
- Fraquinha, mas é a nossa história.
- Pode não ser grande coisa, mas é nossa e de mais ninguém.
- Mas a bem dizer, ainda agora a história começou a sério. Só estamos juntos há cinco meses.
- Mas no fim de contas tudo começou há catorze anos.
- O amor é que foi há cinco meses.
- Então não te lembras que me disseste que estavas apaixonado por mim desde os teus dezassete anos?
- Mas não era amor a sério. Quero dizer, era, mas era uma coisa platónica, como quem quer um Ferrari e sabe que nunca vai ter.
- Genial, comparares-me a um carro.
- Desculpa lá, mas era mais ou menos assim.
- Além de que tu me tiveste. Perdi a minha virgindade contigo.
- E eu a minha contigo. Sim, tens razão. Já gostava de ti desde os meus dezassete anos. Tu é que não gostavas de mim.
- Claro que gostava, senão tinha dormido contigo.
- Mas tu gostavas era do Diogo. Foi ver-te voltares para ele logo a seguir àquela noite.
- Não foi bem logo a seguir.
- Mas acabaste por voltar para ele na mesa. Mesmo sabendo que ele te tinha enganado.
- Pronto, o que é queres? Era uma miúda, uma autêntica totó. Valha-me Deus, eu era tão parvinha. Eu hoje olho para trás no tempo, e só me apetece dar um valente par de chapadas ao meu eu de 18 anos. Era tão queque, tão presunçosa, tão imatura…
- Tu eras a rainha do liceu. Todas as raparigas queriam ser como tu. E todos os rapazes desejavam secretamente estar contigo, namorar contigo.
- Como tu.
- Como eu. Mas tu eras do Diogo e mais ninguém. Ai de quem se atrevesse a aproximar de ti. Eras propriedade do Diogo, e contigo ninguém se metia. Ele deixava isso sempre muito bem claro.
- E enquanto isso, ele metia-se com a bimba da Catarina. E provavelmente com outras.
- Se não fosse aquela noite, eu também gostaria de voltar atrás no tempo e dar uma valente chapada no meu eu de 18 anos, por alimentar uma estúpida fantasia de que tu te poderias interessar-te um bocadinho que seja por mim e mandar o Diogo à viola.
- Isso acabou por acontecer. Naquela noite.
- Pois foi. Mas tão depressa voltaste para ele, que por vezes até imaginava que fui apenas um capricho. Que o fizeste só por ressabiamento, porque apanhaste o Diogo aos beijos com a Catarina.
- Mas não foi. Agora tenho a certeza que não foi. Aliás, no fundo sempre sabia. Mas no dia seguinte, estava tão confusa. Nem queria acreditar que o tinha feito. Que tinha perdido a minha virgindade contigo, quando eu nunca imaginei que acontecesse com mais ninguém a não ser o Diogo. Estupidamente, pensei que o melhor seria pensar que o melhor era fazer de conta que nunca tinha acontecido. Ainda por cima, uns dias depois, o Diogo veio ter comigo, disse-me que estava muito arrependido, que ia mudar, que curtir com a Catarina foi a maior estupidez da sua vida, que agora é que ele percebia mesmo o quanto eu era importante para ele, blá, blá, blá. E eu, vulnerável e confusa, acabei por perdoar e acreditar de novo na treta dele.
- E passaste o resto das férias lá no resort a fingir que não me conhecias. Tu de novo com o namoradinho e os teus amiguinhos, nas vossas festas de meninos ricos, e eu de novo a limpar as casas de banho para juntar um pé-de-meia para a Universidade.
- Eu tinha que te evitar. Falar contigo de novo só iria complicar mais as coisas. Decidi que o melhor era esquecer, mas nunca esqueci. Foi mesmo uma noite mágica, ali ao luar, pé do mar...
- Como aquela canção.
- Pois foi. Ao longo destes anos, quando pensava que tinha esquecido completamente, havia algo que me fazia lembrar em ti e naquela noite. Nem sei como é que correu tudo tão bem, quando estava nervosa. Cheia de adrenalina e raiva, mas super nervosa.
- E eu também. Eu mal queria acreditar. Só dizia para mim mesmo que só podia ser um sonho. Não podia estar a fazer amor com a Raquel Peixoto. Que a minha primeira vez estava a ser com ela. Que se aquilo era um sonho, não queria nunca mais acordar. Mas veio a manhã seguinte e chapéu. Tudo o que tinha era essa recordação. Fiquei destroçado quando em evitaste o resto do Verão. Para me conformar, ia dizendo a mim mesmo: “Ao menos tivemos aquela noite. É melhor que nada.”
- Uma vez, até me lembrei de ti quando estava na cama com o Diogo.
- A sério? Não me tinhas contado isso. E o Diogo não notou nada?
- Achas? Ele, egocêntrico como era, nunca notou nada. Nem nunca lhe falei de nós os dois. Ainda hoje pensa que ele é que me tirou a virgindade. Mas também não era difícil disfarçar. E disfarcei muitas vezes com ele...
- E comigo, disfarçaste?
- Não, contigo foi tudo real. Logo aí, devia ter visto um sinal. Eu acabei por ter relações com ele mais tarde e notei bem a diferença.
- Giro, giro, era que sem querer, quando estivesses com ele, sussurrasses o meu nome: “Francisco”.
- Não querias mais nada... Mas não era só na cama que dissimulava. Desde que por fora, eu sorrisse e fizesse o meu papel de esposa perfeita, para ele estava tudo bem.
- Nem acredito que casaste com ele.
- Nem eu. Mais que iludir o Diogo, iludi-me a mim própria. Pensando que ele tinha mudado, que tinha amadurecido, que os seus dias de playboy já estavam para trás. Durante os anos da faculdade, demos um tempo à nossa relação.
- Claro que para ele, “dar um tempo” significava “quero-me enrolar com quem bem me apetecer sem me sentir culpado”.
- Exactamente. E se bem o pensou, melhor o deve ter feito. Mas para mim foi mais naquela: ele ia para Coimbra, eu para Lisboa, estávamos numa fase nova da vida, iríamos conhecer pessoas novas, seria complicado manter a relação. Até para mim foi melhor assim. Fiz novos amigos, dediquei-me aos estudos, tive um ocasional flirt mas nada de muito sério.
- Nada de noites de tórrida e fortuita paixão, como foi no nosso caso.
- Nem pensar. Uns meses depois do fim do curso, ele veio ter comigo e parecia outro. A dizer que teve saudades minhas, que nenhuma das raparigas que conhecera por lá não se comparava comigo, que estava mais maduro e pronto a assumir responsabilidades. E todo cheio de gestos românticos, como nunca antes fizera. Como é que podia resistir? Mal ele pediu-me em casamento, já estava toda maravilhada.
- E no entanto, ele estava na mesma, só que mais matreiro. Ele sabia que serias a esposa perfeita, que assegurarias bons genes para os filhos e que te tinha como ele queria.
- Resumindo e concluindo. Casámo-nos e tivemos a Madalena. Ao fim de sete anos, apanho-o em flagrante na cama com a estagiária de vinte e dois anos, expulso-o de casa, ele faz inúmeras tentativas de reconciliação, descubro que houve outras antes daquela, eu já não acredito mais nele, mando-o bugiar, por fim ele aceita o divórcio e em pagar pensão de alimentos até eu conseguir orientar-me por mim própria, fica com a menina aos fins-de-semana. Foi muito duro voltar a viver às minhas custas, porque depois da Madalena nascer eu só trabalhei em part-time e no estado em que isto está, foi muito difícil voltar a arranjar emprego. Felizmente, uma colega de curso convidou-me para trabalhar na firma dela e as coisas por fim começam a entrar nos eixos. Mais ainda agora, que te reencontrei. Então e tu? Também tens de contar o que se passou contigo depois daquela noite, não sou só eu.
- Está bem. Ora é assim. Depois de naquela manhã seguinte teres-me cruelmente ignorado e evitado durante o resto do Verão...
- Tu queres ver?
- ...depois desse Verão, convenci-me que o que quer que houve entre nós os dois não iria mais além dessa noite. Fui também para a Faculdade, por lá tive uma namorada. Depois do curso, fui aceitando os trabalhos que me apareciam, mesmo fora da área, até ser contratado por aquele jornal.
- Mais ou menos na altura em que iniciaste o teu famoso blogue.
- Mais ou menos. Uns anos depois, iniciei uma relação séria com a Marta, como tu sabes. Ao fim de dois anos de união de facto, tivemos o Sandro. Três anos depois, vimos que a coisa já não estava a resultar, que já não havia um “nós” na relação, tínhamos só um filho em comum e quase mais nada. Simplesmente deixámos de estar apaixonados, como ela disse. A separação não tardou. Foi inevitável, mas mesmo assim custou-me imenso. Tinha investido muito nessa relação, tinha-me esforçado, tinha feito planos e foi doloroso saber que esses planos já não se iriam realizar. E sentia que tinha falhado. Os meus pais continuam felizes e casados ao fim de quase quarenta anos, e eu sempre quis algo assim para mim, alguém para amar e passar o resto da minha vida. E pensava que a Marta seria essa pessoa. Mas nós continuamos amigos, damo-nos lindamente, e não só apenas por causa do nosso filho. Aliás, ela está grávida de novo, do actual companheiro. Costumamos ir jantar com eles várias vezes, apesar da Raquel não gostar muito da Marta.
- Mentiroso. Eu gosto dela. Não me identifico muito com ela, temos muitas opiniões diferentes, mas damo-nos bem. E creio que ela também simpatiza comigo.
-  Claro. Ela sabia da nossa história. Mas continuando, a minha separação da Marta afectou-me bastante, muito mais do que eu gostaria. Ao ponto de não me sentir muito festivo quando recebi a notícia de que iam publicar o meu blogue em livro. E publicar um livro era apenas o meu maior sonho desde que aprendi a escrever. Até que surgiste de novo, numa sessão de autógrafos.
- Eu era uma das poucas pessoas que nunca tinham lido o blogue dele. Mas quando vi a foto dele na contracapa do livro, vieram-me à mente de novo as memórias daquela noite. Só conseguia pensar “Uau, o Francisco Antunes escreveu um livro.” Ele sempre escreveu muito bem, lembro-me de gostar das coisas que ele escrevia para o jornal da escola. Claro que comprei logo o livro, devorei-o de ponta a ponta nessa mesma noite e mal soube que iria haver uma sessão de autógrafos, eu tinha que ir lá. Mas era mais naquela de nostalgia, nada mais.
- Mal dei por ela, quando ela me estendeu o livro para autografar. Já tinha dado milhares de autógrafos e nem olhei quando lhe perguntei o nome. Mas assim que ouvi o voz dela, fiquei estarrecido. Lá estava ela, ao fim destes anos todos. Ainda por cima, parecia que não tinha mudado nada. Bonita como há catorze anos atrás.
- Vou fingir que isso é verdade. Já tu tinhas mudado, mas para melhor. Quer dizer, já eras giro antes, mas parecia que tinhas melhorado com o tempo. Até os óculos faziam-te parecer mais sexy. Agora é que ele estava mesmo um borracho.
- Sim, agora que era famoso e tal.
- Até parece...
- Claro que estou a brincar. Assinei com “Para a Raquel, catorze Verões depois. Um beijo, Francisco”.
- E eu julgava que o nosso reencontro ficaria por aqui.
- Eu também. Mas duas semanas, depois, numa cena melosa como aquelas que parece que só acontecem nos filmes, lá estava ela no Burger King.
- Eu tinha ido ao cinema com a Madalena e fomos almoçar ao Burger King. Ela foi brincar para uns baloiços que lá havia e uma das crianças que lá estavam era o filho dele. A dada altura, a Madalena, que tem o hábito de ir ter comigo apresentar os amigos que vai fazendo, veio logo dizer-me “Mãe, este é o Sandro.” E o miúdo, muito educado, estende-me a mão à homenzinho, diz: “Como está, passou bem?”. Achei tão engraçado. Então ele diz à Madalena: “Vou só ter ali com o meu pai, já volto.” Vejo-o a correr e quando não é o meu espanto quando vejo ele a ter contigo a chamar-te pai.
- Igualmente espantado, fui ter contigo, pusemos a conversa em dia. E como quem não quer a coisa, perguntei-te se queria almoçar comigo um dia destes.
- Combinámos no sábado seguinte, uma vez que a Madalena ia ficar com o pai e o Sandro com a Marta.
- Sendo que o que era para ser só um almoço amigável, mas acabou por ser dois dias de paixão, a recuperar o tempo perdido. E foi ela que começou, vejam lá!
- Eu não sei o que me deu. Só sei é que já há três anos não tinha sexo. Pensava que o sexo não me fazia falta. Mas foi revê-lo, tão bonito e atraente, que percebi que não era bem assim. Olhem, atirei-me e, por uma vez da vida, não quis saber do resto. Foi como se estes anos não tivessem passado. Quero dizer, senti que os anos tinham passado, já não éramos miúdos, éramos adultos. Mas o que tinha sentido naquela noite, voltei a sentir. 
- E eu também. Ao longo destes anos, dava por mim a pensar em ti, naquela noite, em onde e como estarias então. E ao rever-te, foi como se nunca tivesse deixado de estar apaixonado contigo. E cinco meses depois, estamos assim.
- Pois estamos. Cada um ainda mora na sua casa, cada um ainda faz a sua vida, mas sempre que podemos, encontramo-nos.
- Seja para uma saída romântica ou uma sessão de sexo escaldante.
- Mas não pensem que tem sido um mar de rosas. Este homem por vezes irrita-me profundamente, dá-me mesmo cabo da paciência.
- Ui...E tu também não és uma santa. Mas mesmo quando te zangas, continuo a gostar de ti.
- É chato quando nos zangamos, mas no fundo, prefiro ralhar do que reter tudo cá dentro, como quando eu estava com o Diogo. Pelo menos, sinto-me viva. A princípio, pensei que a Madalena iria estranhar, mas qual quê, está felicíssima, já adoptou o Sandro como irmão. Aliás, praticamente desde que começou a falar que me pedia um mano.
- Não sabemos onde isto vai dar, se vai ser para durar. Mas até agora, não tem corrido mal. E eu também.
- Eu também.
- É como se uma premonição se realizasse. Full circle.
- Absolutamente. E é isto.
- E é isto. Como vêem, a nossa história é toda melosa e foleira, uma comédia romântica muito fraquinha e cliché.
- Pois é. Mas é a nossa história.

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