quarta-feira, 30 de março de 2011

Strawberry Blonde

Ao Rui e à Ola

Encaras-me com os teus atentos olhos cinzentos. Sinto que a minha língua vai dar três voltas antes que as cordas vocais dêem os acordes e eu despeje cá para fora as palavras.
- Która godzina? To dwa i pół godziny.
Que horas são? São duas horas e meia. Uma vez que sabes falar correcta e aceitavelmente a minha língua, tenho que me esforçar para saber minimamente a tua. Faço um esforço mas ainda esbarro nos zês que dizem-se como jotas, nos vês que são dáblius, nos éles que são traçados no meio. Não raras vezes, acabo num misto de sopa de letras com sopinha de massa. 
Mas, compreensiva, sorris amavelmente diante do meu discurso afásico e elogias-me ao menor progresso.
Em todo o caso, quando o embate verbal luso-polaco termina empatado zero a zero, sempre podemos recorrer ao inglês e ao francês para manter a bola em jogo. 
O melhor de saber falar várias línguas é a sensação que podemos pertencer a qulaquer mundo. Mesmo sem sair de um país, sentimo-nos a viajar, como se o mundo (e em particular a Europa) fosse a nossa ostra. Gosto da sensação que se de repente fosse teleportado para um país qualquer, eu recorria ao meu arsenal de idiomas adquiridos e safava-me airosamente por lá. Como por exemplo, aterrava no meio da Polónia mais profunda, arranhava uma meia dúzia de frases de entre aquelas que me ensinaste, talvez até um simples Cześć! e logo aí, os teus compatriotas elevavam-me de forasteiro vagabundo a velho amigo. 
Tal como tenho esta ideia romântica de que estávamos de lados diferentes de um muro mais impassível do que aquele de Berlim. Tu de um lado onde o comunismo queimava os últimos cartuchos, e eu aqui num canto ainda a ressacar da ditadura e da revolução. E quando um e outro muro foram abaixo, foi só sincronizar os códigos e passámos de almas estranhas a espíritos em harmonia.
Ou talvez, o que nos juntou foi uma outra língua. Aquela que não tem fonética, gramática ou síntaxe. Mas onde se diz sempre tanto...
Por vezes essa língua assobia por entre as palavras que dizemos. Quando eu te digo que a tua cor do cabelo é aquilo que em inglês se designa como strawberry blonde. Quando acrescentas o sufixo ek ao meu nome. Ou então, num simples Olá! ou Cześć!, conforme o caso.

quinta-feira, 24 de março de 2011

1984

O meu nome é Paulo e tenho quatro anos. Toda a gente diz que 25 de Abril, o dia dos meus anos, é muito importante para Portugal, por que foi quando veio a Liberdade. Mas apesar da Liberdade, dizem que há crise no país, e que o Governo não presta. Eu ainda não sei bem o que é que isso quer dizer, vejo só senhores a falar na TV. Acho graça às bochechas do Mário Soares e acho que o senhor Ramalho Eanes é um homem muito sério.
Vivo em Torres Novas com o meu Pai e a minha Mãe. O meu pai arranja carros numa oficina e quando ele chega a casa e eu vou abraçá-lo, a camisola dele cheira a óleo. A minha mãe trabalha numa lavandaria e quando eu vou lá ter, há um cheiro que dizem ser de benzina. De vez em quando, eu pergunto aos meus pais quando é que eu vou ter um mano para brincar comigo.
Como ainda não tenho idade para ir à escola, passo os dias em casa de uma senhora madeirense muito velhinha a quem eu chamo de Titi e que é como uma terceira avó para mim. Ela tem muitos passarinhos numa grande gaiola, e eu vejo-a a dar-lhes alpista. Ao lanche, ela traz-me café com leite e pão com manteiga enquanto vejo o Dartacão. 
Apesar de não ir à escola, já sei juntar letras e fazer números. Quando eu vou com o meu padrinho à sede do Clube Desportivo de Torres Novas, às vezes eu mexo na máquina de escrever e vejo aquelas coisas compridas a fazerem letras no papel e isso ainda é mais giro do que fazê-las com caneta. 
Gosto muito de ver televisão. Imagino que voo com a Abelha Maia, que luto de capa e espada com o Dartacão, que faço corridas com os Wacky Races e rio como aquele cão, e até imagino que um dia vou ter uma namorada muito bonita e loura como a boneca Candy Candy. Também a Mónica, o Cebolinha, o Tio Patinhas e o Rato Mickey são todos meus amigos e com eles brinco durante horas.
Na rádio ou nos telediscos, ouço músicas muito engraçadas, como aquela do teledisco que tem um desenho animado de um bichinho que ri como o Pica-Pau ou aquelas de uma rapariga loura com um nome estranho: Madonna. Muitas destas músicas são em outra língua, que não é a que eu falo: quando for grande hei de perceber tudo o que essas palavras querem dizer.
Mas na televisão há um senhor que também tem um nome estranho, Herman, mas que tem muita graça e rio muito das caras que ele faz. Há um senhor que deve ter a idade do meu avô que fala com os agricultores. Há senhoras muito bonitas que aparecem para dizer quais são os programas que vão dar a seguir. Há telenovelas em que se fala brasileiro, que é como falar em português mas um bocadinho diferente.
E há um Festival de música com muitos países: Portugal levou uma senhora de preto a tocar piano, mas ganharam três rapazes loiros da Suécia. Eu preferia que tivesse ganho a menina da Holanda que tinha um vestido com um laçarote que cantou uma canção de amor. 
Fico muito contente quando o Benfica ganha e o Sporting perde. Também fiquei muito contente quando vi o Carlos Lopes a ganhar a corrida e a fazer com que a bandeira de Portugal subisse lá no alto. Aliás, gostei de ver tantos desportos naquilo a que chamam Jogos Olímpicos: os homens a correr, a nadar e a andar de cavalo, as meninas a dançar na água e a fazer ginástica com arcos e fitas.
Quando for grande, hei de saber falar como eles nos filmes e nos telediscos. Falarei em telefones pequeninos sem fios. Terei um computador em que eu posso escrever muitas coisas e enviar a muitas pessoas como se fossem cartas. Poderei ouvir música em todo o lado sem comprar aqueles discos pretos que vejo a girar enquanto tocam. Enfim, tanta coisa que eu vou fazer um dia, quando for tão grande como o meu Pai.
Mas por agora sou feliz a passear com os meus pais, a brincar com os meus primos, a andar nos baloiços, a fazer castelos de areia na praia, a ver os bonecos da TV, a comer os gelados da Olá.
O meu nome é Paulo e ontem sonhei que tinha quatro anos.



terça-feira, 22 de março de 2011

Ainda é cedo, amor

Não ligues aos primeiros raios de sol que entram no quarto, não ligues às horas que piscam no relógio. Sustém a respiração e não desfaças a muralha.
Deixa-me ainda ser pequenina e frágil, enrolar-me como o bicho-da-conta, perder-me no teu abraço. Mantém-te aí como o meu repouso de guerreira até eu ganhar a força para enfrentar a luz.
Porque não posso permanentemente manter a minha pose de mulher destemida, corajosa, temerária. Porque como todos nós, os desgostos e os medos assaltam-me à noite e remexem-me a alma, deixando-me numa angústia inquietante.
Ao menos contigo, essa angústia não se funde com o peso da solidão e só estares a meu lado, qualquer obstáculo da vida não me parece tão intransponível. Sem palavras, dizes-me tudo o que preciso ouvir.
Dou-me de corpo e alma ao meu refúgio inventado em ti, e tu entregas-me com a doçura que tu não admites ter, mas que se dirige lentamente ao meu coração. E transformo-me numa luz que te ilumina o olhar, num sonho que realizas, num ataque de desejo que sacias. E é então que sei que eu sou o teu refúgio também.
Ainda é cedo, amor. As últimas estrelas da noite ainda não gastaram o último brilho, os ruídos da rua ainda são confusos e distantes. Ainda há tempo para sermos um só, para me pegares na mão, para dizeres que isto é amor. Para que eu acredite em mim, em ti, em nós e acorde guiada pela força de duas almas destinadas a se encontrar.
Prolonga-te no meu corpo até que o dia se anuncie claro e real. Não te iludas com este rasto de luz no quarto. Ainda temos tempo para não termos reservas nem segredos, para sermos o que somos e não aquilo que mostramos ser. Quando o novo dia chegar, podes vestir a tua pele e ser aquele homem que o mundo conhece.
Mas mesmo à luz do dia, cada um de nós, trará em si o cheiro e o gosto do outro. A recordação da pele, o calor da alma. E a vontade de regressar ao conforto do nosso refúgio.
Mas ainda é cedo, amor. 

segunda-feira, 21 de março de 2011

Mágicos Cansaços

Subir as escadas, rodar a fechadura, pendurar o casaco.

Se Fevereiro é o mês mais curto do ano, porque é custa tanto a passar?

Ligar o micro-ondas, aquecer a lasanha comprada em take-away, sentar-me no sofá, ver letargicamente o telejornal. Estou cansado e não sei porquê.

Esconder umas fotos, sair para a rua, esperar que ela faças as malas e vá embora.

Lavar a loiça, arrumá-la, pôr a camisa no cesto da roupa suja, lavar os dentes, vestir o pijama, deitar-me na cama, marcar o despertador.

Já nada resta.

Hoje é um daqueles dias em que vivo sem estar vivo. Todos nós temos dias assim. Somos a rotina a arrastar o corpo, a pintar sorrisos de amarelo e a encher o cérebro de trivialidades prontas a serem despejadas.

Esta foto foi de quando fomos a Óbidos. Estava um belo dia e tinhas o cabelo ao vento, percorrendo a muralha a passo de donzela.

Também tu terás dias em que te arrastas por uma lista mental de tarefas e dás contigo na cama num cansaço inexplicável, sem saber o que fizeste de tão extenuante. Quando me dá para a lamechice, dou por mim a desejar que estejas infeliz e a almadiçoar o dia em que decidiste que eras mais feliz sem mim. Como canta a loura dos ABBA em "One of us".

Sorry for herself, feeling stupid, feeling small, wishing she had never left at all.

Mas não, já não desejo isso. Por mais que sinta a tua falta, aceitei que tu já não voltas e que ao fim de muitas vírgulas, finalmente surgiu entre nós o ponto final. Para alguns, o fim do amor é o fim da vida. Para outros, a oportunidade para novas caças. Para mim, é como as fotografias que não levaste. Pedaços de momentos perfeitos condenados a uma memória agridoce.

Dançámos sob o céu do fim da tarde, quando a noite prometia um refúgio e um deslizar de beijos.

O que vale é que sei que após dias letárgicos, há de haver dias para preencher a alma. Para ser mais forte do que qualquer estranho cansaço.

Alma Cortada

ao meu Pai

Eu já não sou bem eu
porque tu já não és bem tu.

Agora o chão foge-me dos pés
porque no mais alto do Altos
viajas de luz em luz
nas asas que te deram.

Suspenso, eu caminho
procurando que a queda não magoe o meu coração
porque a alma não parará de doer
porque levaste parte dela
algures entre o invisível.

Repousa, observa, ama, sorri,
continua a dizer piadas

para que eu
mesmo sem um dos pilares da minha terra
seja amor em cada passo.

Escola ao Luar

Escola? Para quê? Coisa mais seca, estar ali sentado a ouvir os profes a explicarem coisas que não servem para nada. Ainda bem que já me deixei disso há muito tempo.
Desde que descobri os prazeres da rua e da noite, andar na escola deixou de fazer sentido. Os cotas ainda mandaram vir mas fiquei na minha. E assim, comecei a levantar-me às três da tarde e a deitar-me às quatro, cinco da manhã.
Aturar a seca da escola, se isto agora é que é vida. Devorar hambúrgueres no shopping, beber copos de whisky a penálti, roubar carros mesmo nas barbas dos bófias, as corridas a alta velocidade pelas estradas da periferia, a adrenalina da luta com os cabrões dos outros gangs, os corpos despidos das raparigas nos bancos de trás dos carros.
Chamam-nos marginais, criminosos, irresponsáveis. Tudo gente parva, uma cambada de adultos frustrados, invejosos da nossa juventude. Haverá melhor sensação do que ir estrada fora e prego a fundo ao volante de uma alta bomba? Haverá maior amizade do que a nossa, maior do que a vida e a morte? Haverá momento mais perfeito do que aquele em que fiz a Patrícia mulher nos meus braços? De todas as miúdas com quem estive, foi ela quem mais me marcou, olhos azuis de um brilho único, sorriso de princesa, corpinho de catorze aninhos bem feitinhos.
É claro que a malta não é perfeita, temos algumas brigas entre nós, mas isso é normal, sobretudo com uns copos a mais. Como houve há pouco, nos anos da Sónia, quando o Jisga e o Chaveta pegaram-se por causa do dinheiro que um devia ao outro. O Chaveta até puxou de uma pistola. Tentámos separá-los antes que aquilo desse para o torto. Até que se ouviu um tiro. De resto, não me lembro de mais nada. Foi como se de repente, ficasse tudo escuro.
Ainda oiço a voz da Patrícia. Ela chama por mim, Bruno, o que é estranho porque todos me tratam por Cadete, a alcunha que me foi posta durante uma peladinha.
E agora estou assim. Consigo ver algumas coisas, mas tudo está muito confuso. Que estranho, devo estar a dormir. Estou a sonhar que estou deitado no chão da garagem da Sónia, com sangue a escorrer-me do peito. A Patrícia está ajoelhada, ao pé de mim, os seus olhos azuis em lágrimas. A Sónia anda de um lado para o outro como uma barata tonta e as outras raparigas tentam acalmá-la. O Jisga surge com uma pistola e anuncia:
- Vou atrás do Chaveta.
- Vou contigo. – diz o gordo do Micha.

Saem porta fora. O Gera suspira e diz:
- De todos nós, tinha que morrer o Cadete. Era o único de jeito de entre nós.

Porra, que raio de pesadelo. Ainda bem que não tarda nada, vou acordar no meu quarto, a malta vai voltar a ser amiga como dantes, voltamos a comer hambúrgueres e a speedar nos carros que roubamos só pelo gozo. Quem sabe se não volto a possuir a Patrícia, e verei nos seus olhos azuis o brilho das estrelas, e não as lágrimas que correm sem parar pela cara dela.
Eu não posso estar morto. Só tenho dezasseis anos, tenho tanta vida por viver, tanta aventura para experimentar. Vou esperar mais um pouco. De certeza que vou acordar.

A Chave do Cadeado

Devia ter a tua idade quando resolvi fechar o meu coração, ou pelo menos, os compartimentos mais secretos. Talvez por algum desgosto do qual já não recordo rosto ou guião. Só sei que a partir de então, decidi que as mulheres não seriam para mim mais do que albergues de pernoitas, ora agradáveis ora convenientemente esquecidas.
Como não sou feio nem nunca fui parvo, tive quantas eu quis. A maioria jogava pelas minhas regras mas muitas acalentaram a esperança de encontrar a chave do meu cadeado mais cerrado. E pelo menos com duas ou três, cheguei a ter vontade de me mostrar de coração aberto. Mas fosse por orgulho, por conforto ou medo, não o fiz.
Agora tenho quarenta e quatro anos e encontro-me a desfrutar do teu corpo, vinte anos mais novo que o meu. E de repente, o papel do amante frívolo já não me parece tão apetecível. Fosse eu mais novo, e talvez te dispensaria com a facilidade de outras aventuras. Mas tiveste a sorte de me apanhar com esta idade, onde olho para trás e vejo tantos espaços em branco na minha vida. Chego-me a arrepender de não me ter entregado a quem eu mais quis; talvez saísse bastante magoado mas assim, podia não sentir como se algo me tivesse passado ao lado.
Será talvez por isso que me custa desembaraçar de ti. Continuo a aceder aos teus apelos, aos teus olhos de jade, ao teu corpo esculpido a cinzel, ao teu riso garoto.
Tu gostas de mim porque és daquelas raparigas mais velhas que os seus anos, para quem os rapazes da tua idade não passam de miúdos imaturos e incipientes. Para quem homens mais maduros são um interesse mais intrigante. Agora tu julgas que eu sou o máximo, tudo o que achas que um homem deve ser: maduro, sábio, atencioso, responsável e hábil. Mas não me admiro se daqui a pouco tempo, tu te perdesses de amor por um tipo novo e bem mais giro que eu, e deixasses este velho no mesmo impulso que te levou a aceitares a minha conquista.
Mas ainda assim, minha bela, desta vez não quero rédeas. Só se vive uma vez, e sem viver de coração aberto, fica apenas uma vida meio vivida.    

Quero

Quero ser melhor pessoa do que eu sou. Quero não ser pior do que imagino poder ser.
Quero que o tempo passe mas não quero um dia acordar e perguntar para onde foi o tempo.
Quero aquilo que o dinheiro não pode comprar, mas também queria dinheiro para comprar o que quisesse.
Quero amar, amar perdidamente mas não quero que o meu amor me deixe perdido.
Quero saber para que é que sirvo e não quero sentir que não presto para nada.
Quero gostar das pessoas e quero que as pessoas gostem de mim.
Quero continuar a sonhar e andar na Lua, mas também quero ter os pés no chão quando é preciso.
Quero conhecer o resto do mundo e quero ter um lugar para voltar.
Quero fazer as coisas certas e não ter medo de fazer tudo errado.
Quero ter momentos solitários, mas não momentos de solidão.
Quero crescer, mas não quero comportar-me sempre como um crescido.
Quero ter sempre motivos para rir e licença para chorar sem me sentir ridículo.
Quero que os meus cincos sentidos nunca me abandonem e que o meu sexto sentido não me falhe.
Quero ser melhor e que gostem de mim, mesmo que não melhore.