quinta-feira, 24 de março de 2011

1984

O meu nome é Paulo e tenho quatro anos. Toda a gente diz que 25 de Abril, o dia dos meus anos, é muito importante para Portugal, por que foi quando veio a Liberdade. Mas apesar da Liberdade, dizem que há crise no país, e que o Governo não presta. Eu ainda não sei bem o que é que isso quer dizer, vejo só senhores a falar na TV. Acho graça às bochechas do Mário Soares e acho que o senhor Ramalho Eanes é um homem muito sério.
Vivo em Torres Novas com o meu Pai e a minha Mãe. O meu pai arranja carros numa oficina e quando ele chega a casa e eu vou abraçá-lo, a camisola dele cheira a óleo. A minha mãe trabalha numa lavandaria e quando eu vou lá ter, há um cheiro que dizem ser de benzina. De vez em quando, eu pergunto aos meus pais quando é que eu vou ter um mano para brincar comigo.
Como ainda não tenho idade para ir à escola, passo os dias em casa de uma senhora madeirense muito velhinha a quem eu chamo de Titi e que é como uma terceira avó para mim. Ela tem muitos passarinhos numa grande gaiola, e eu vejo-a a dar-lhes alpista. Ao lanche, ela traz-me café com leite e pão com manteiga enquanto vejo o Dartacão. 
Apesar de não ir à escola, já sei juntar letras e fazer números. Quando eu vou com o meu padrinho à sede do Clube Desportivo de Torres Novas, às vezes eu mexo na máquina de escrever e vejo aquelas coisas compridas a fazerem letras no papel e isso ainda é mais giro do que fazê-las com caneta. 
Gosto muito de ver televisão. Imagino que voo com a Abelha Maia, que luto de capa e espada com o Dartacão, que faço corridas com os Wacky Races e rio como aquele cão, e até imagino que um dia vou ter uma namorada muito bonita e loura como a boneca Candy Candy. Também a Mónica, o Cebolinha, o Tio Patinhas e o Rato Mickey são todos meus amigos e com eles brinco durante horas.
Na rádio ou nos telediscos, ouço músicas muito engraçadas, como aquela do teledisco que tem um desenho animado de um bichinho que ri como o Pica-Pau ou aquelas de uma rapariga loura com um nome estranho: Madonna. Muitas destas músicas são em outra língua, que não é a que eu falo: quando for grande hei de perceber tudo o que essas palavras querem dizer.
Mas na televisão há um senhor que também tem um nome estranho, Herman, mas que tem muita graça e rio muito das caras que ele faz. Há um senhor que deve ter a idade do meu avô que fala com os agricultores. Há senhoras muito bonitas que aparecem para dizer quais são os programas que vão dar a seguir. Há telenovelas em que se fala brasileiro, que é como falar em português mas um bocadinho diferente.
E há um Festival de música com muitos países: Portugal levou uma senhora de preto a tocar piano, mas ganharam três rapazes loiros da Suécia. Eu preferia que tivesse ganho a menina da Holanda que tinha um vestido com um laçarote que cantou uma canção de amor. 
Fico muito contente quando o Benfica ganha e o Sporting perde. Também fiquei muito contente quando vi o Carlos Lopes a ganhar a corrida e a fazer com que a bandeira de Portugal subisse lá no alto. Aliás, gostei de ver tantos desportos naquilo a que chamam Jogos Olímpicos: os homens a correr, a nadar e a andar de cavalo, as meninas a dançar na água e a fazer ginástica com arcos e fitas.
Quando for grande, hei de saber falar como eles nos filmes e nos telediscos. Falarei em telefones pequeninos sem fios. Terei um computador em que eu posso escrever muitas coisas e enviar a muitas pessoas como se fossem cartas. Poderei ouvir música em todo o lado sem comprar aqueles discos pretos que vejo a girar enquanto tocam. Enfim, tanta coisa que eu vou fazer um dia, quando for tão grande como o meu Pai.
Mas por agora sou feliz a passear com os meus pais, a brincar com os meus primos, a andar nos baloiços, a fazer castelos de areia na praia, a ver os bonecos da TV, a comer os gelados da Olá.
O meu nome é Paulo e ontem sonhei que tinha quatro anos.



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