sábado, 14 de novembro de 2015

K2

Nunca o dissemos abertamente, mas tanto eu como o Fábio sempre achámos um alívio não sermos gémeos idênticos. Já bastava termos que partilhar tanta coisa, mesmo ainda antes de virmos ao mundo, que seria exasperante para nós ter que ver a nossa cara reflectida no outro e sermos vistos como se um fosse o original e outro a cópia, ou pior ainda, como um só. Como naquela anedota em que um pai mostrava uma foto só de um dos filhos gémeos porque e não via porque mostrar também o outro sendo eles iguais. Felizmente a armadilha da genética foi-nos piedosa, apenas com os traços fisionómicos suficientes para que se visse que éramos irmãos um do outro e filhos dos nossos pais. E como se quiséssemos provar desde o parto que viemos juntos mas não misturados, fizemos sempre por reclamar a nossa individualidade. Como tal, era fácil para toda a gente saber desde muito cedo quem era o Bruno e quem era o Fábio. E tem sido assim ao longos dos vinte e sete anos que já vivemos. 

O Fábio foi sempre a alma da festa, a voz da vontade, o conversador inato enquanto eu sempre preferi-me perder na profundeza dos meus pensamentos ou no conforto dos números. Claro que tivemos essas nossas brigas, mas não foram mais de que as de quaisquer outros irmãos. Na maioria das vezes a nossa divergência de personalidades acabava por ser bastante harmoniosa e complementar. Que o diga o nosso pai que percebeu que com o meu irmão a dar conversa aos clientes e eu nos bastidores a ver se as letras e os números batem certo, o negócio de família estava bem entregue nas nossas mãos.  

Quando o Fábio desafiou-me para a canoagem, o desporto em que ele assentou depois de tentar muitos outros, aceitei algo contrariado. Mas não tardei a perceber que estando no meio da natureza, em harmonia com os elementos, era o desporto ideal para a minha natureza tão filosófica. Na cadência da pagaia, na fluência das águas, nas asas do vento, os meus esforços acabavam por sair-me com uma inesperada facilidade, por vezes até superando o Fábio. 
Mas foi quando nos propuseram juntar forças para o K2, é que os resultados começaram mesmo a aparecer a um ritmo surpreendente até para nós. Tudo bem que estamos longe de ser o Emanuel Silva e o Fernando Pimenta, mas não é a glória olímpica que nos move, mas sim a alegria do esforço e da auto-superação, o contacto da natureza e o reforçar daquele sensação de, por entre as nossas muitas diferenças, sermos desde o primeiro momento companheiros nessa viagem que é a vida. Apesar de apenas muito de vez em quando sentirmos aquela telepatia que dizem que é característica dos gémeos, existe entre nós uma compreensão e uma aceitação mútua que se expressa para além das palavras. É um laço que nos une foi sempre mais forte e mais nítido do que qualquer outra coisa que possamos sentir.  
    

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Lua Nova

Eis-me aqui, parada junto ao semáforo, tamborilando os dedos no volante, à espera que acenda a luz verde. São duas da manhã, a rua está deserta, circulo sozinha pela cidade. Então vem-me à cabeça um cenário de transgressão: e se eu cruzasse este sinal vermelho, protegida pela solidão desta rua? Como estamos na Lua Nova, nem sequer a Lua seria testemunha. E aquelas estrelas que aproveitam a ausência de luar para povilhar o seu brilho no firmamento estão longe demais para me avistarem cá de baixo. A minha mão desce até ao manípulo das mudanças, o meu pé já sente a urgência de carregar no acelerador.
A luz verde acaba por surgir no preciso instante antes de ceder ao meu impulso final. Em vez de um arranque vertiginoso sob o chiar dos pneus e o zunido do motor, avanço sem pressa pela via, seguindo o meu caminho.

Creio que a primeira vez que senti este desejo transgressor quando tinha cinco anos e imaginava-me a empurrar o gato malhado da minha avó que dormia descansado num novelo de si próprio num degrau das escadas. Quase que podia sentir as minhas mãozinhas sobre o seu volumoso pêlo a pressioná-lo para fora do degrau, o bichano a despertar estremunhado num grito assustado e a fugir num voo picado escada abaixo. Depois seguiram-se outros cenários realizados na minha mente, onde calcava um relvado junto do sinal “Não pise a relva”, largava um grito em plena biblioteca, desatava-me a rir no meio de uma missa, puxava o cabelo de uma antipática colega da escola, pegava num sabonete no supermercado e atirava-o contra a prateleira das lacas para o cabelo e por aí fora. Claro que nunca fiz nada disso. Primeiro porque faltava-me sempre a coragem para pisar de vez o risco, e depois porque a imaginação do acto já me dava pica suficiente, provavelmente mais do que obteria com a realização. Quando uma vez confessei isto à minha mãe, ela concluiu que era uma partida do meu subconsciente. Seria precisamente por eu ser tão bem comportada que me sentia fascinada com maus comportamentos. E no fim, ela sossegou-me, afirmando:
- É normal ter vontade de ser mau. Fazer maldades é que já não é normal.

De facto fui sempre uma menina bem comportada. Obedecia sem grandes protestos às ordens dos meus pais, mantinha o meu quarto arrumado, era disciplinada e atenta nas escolas, nunca chegava das saídas à noite depois da hora combinada, nunca bebi álcool para além da conta, nem sequer nunca fumei um cigarro inteiro. Mas nesse caso, também não tenho interesse nisso, detesto o cheiro a tabaco. Até acho pior que o cheiro da ganza. E aliás, a única vez que fumei ganza foi em Amesterdão, pelo que posso seguramente afirmar nunca fiz nada de ilegal.
Vistas bem as coisas, a minha mãe tinha razão. Agradava-me mais a ideia de me portar mal do que propriamente o acto. E qualquer pedrada de adrenalina que pudesse obter se o fizesse não compensaria certamente as consequências que teria de enfrentar.
No entanto, agora enquanto conduzo pelas ruas desta cidade, não consigo deixar de pensar que pisei o risco e que tenho de me aguentar à bronca. A bem dizer, não houve nenhum risco para pisar. Foi sexo consentido entre dois adultos oficialmente desimpedidos. Mas a frieza das palavras não se encontra no labirinto dos sentimentos. E o que sinto é que traí o Fernando, ao voltar-me a entregar de novo ao Gustavo.

O Gustavo continuava igual a si próprio: sedutor, descontraído, convidativo, aplicado. Desta vez tinha regressado a Portugal como membro da banda que acompanha uma cantora de jazz holandesa na sua digressão europeia e claro que não perdeu a oportunidade de voltar a ligar-me, para de mais uma vez nos encontrarmos e matarmos saudades dos corpos um do outro, como temos feito a espaços durante o último ano e meio. Lançava-me de novo o seu canto de sereio, na sua voz grave e calma e mais uma vez atordoava-me os sentidos e ateava o fogo dos meus desejos de mulher, deixando-me incapaz de dizer não.
Porém, desta vez já havia o Fernando e o meu sim não foi tão imediato. Fui enganando uma eventual culpa com a racionalização. Eu ainda não namoro com o Fernando. Quando muito, andamos a ver se andamos a namorar. Se dependesse só dele, já teríamos relação oficial mas ele tem sabido esperar que eu resolva o puzzle da minha cabeça e que tome uma atitude, ciente que já não é para mim apenas um amigo e certo que não tardará a sair da minha friendzone para o nível seguinte.

Como sempre, bastou uma porta fechada e estarmos sozinhos entre quatro paredes para que o Gustavo e eu nos agarrássemos, como se entre nós irradiassem todas as ondas magnéticas reconhecidas pela Física. As roupas caíram à pressa, as peles sedentas de contacto, as bocas sequiosas do licor salival, as mãos esvoaçando por entre as curvas e contracurvas dos músculos, os sexos roçando-se em fúria.
Como sempre, o Gustavo foi magnífico no seu desempenho, com o seu toque a deixar cada centímetro da mulher que sou em brasa. A responder às minhas ânsias, a celebrar-me com beijos, a dominar-me com o seu belo corpo, a impor-me o seu ritmo vertiginoso, a rasgar-me bem fundo, a garantir-me que os orgasmos seriam alucinantes.
Como sempre, respondi na mesma forma, deixando-o desvairado para além da razão, sem outro pensamento senão em possuir-me, inebriado no meu cheiro e sabor de mulher. Provocando-o com os meus dentes cerrados e as minhas unhas afiadas. Zunindo-o com os meus gemidos de prazer rumo ao clímax. Movendo-me para que ele sentisse todos os estremecimentos do meu ventre. Desdobrando-me entre a amante exigente e a amante submissa, obrigando-o a efectuar a soma das partes.
Como sempre, ele foi perfeito, o sexo foi além de fantástico.

Só que desta vez, assim que a euforia desapareceu no éter da noite pelo céu da Lua Nova, e os corpos saboreavam a doce trégua depois da violência do prazer, tudo ficou diferente. A saudade que eu tinha deste meu amante e do seu corpo foram aniquiladas por outra saudade.
Uma saudade que vinha agora do coração e que me levava a outro corpo, a outro amante. A um outro amado.
- O que tens, Luísa? – perguntou o Gustavo.
Tentei dizer alguma coisa mas só me apetecia chorar e não consegui evitar que uma lágrima se condensasse no meu rosto. Com a sua habitual perspicácia, percebeu que eu não estava bem mas nada disse. Passou apenas a mão pela face, limpando-me a lágrima. Depois pegou no trompete e, ainda nu, tocou-me um excerto de uma música que tinha ouvido antes no concerto. Recordei a canção que a cantora cantou no concerto.

Whisper to the moon, my heart pleads for you.

Sentei-me na cama, desfiz o nó da garganta.
- O Fernando ama-me.
Ele parou de tocar e sorriu para mim.
- O Fernando tem bom gosto.


Assim que senti a brisa da noite, olhei para o céu sem lua, mas cheio de estrelas. De certa maneira, creio que amei o Gustavo. Não pela atracção animal que ele me inspirou, pelos prazeres que ele me fez descobrir, nem sequer pelo bom entendimento que soubemos cultivar fora da insanidade carnal. Amei-o com a ternura de alguém que foi importante para nós e que nos pintou um novo matiz da vida. No caso dele, talvez a luz branca do luar. Mas a rotação da vida é constante e só agora percebi que estava agora na órbita de um novo ciclo. Peguei no meu carro e voei no reflexo celestial do alcatrão. Se eu pisei algum risco, só tenho é que seguir em frente.  

Filho De Ninguém

Já faz dois meses que eu e a Marisa decidimos acrescentar benefícios à nossa amizade. Encontramo-nos pelo menos uma vez por semana. Toda esta situação tem tanto de estranho como de excitante.
Estranho porque quando me envolvo com alguém, gosto de conhecer as histórias dela, o que ela passou, dessa descoberta gradual. Mas eu conheço a Marisa desde que ela ainda usava fraldas e eu não passava de um cachopito. Crescemos juntos e temos todo um passado comum de amizade e de conhecimento. Ela sabe toda a minha história e eu sei a dela. Até dos detalhes mais íntimos como quando ela se enrolou com um italiano em Ibiza na viagem de final de curso. E embora por vezes indagasse como seria ter uma coisinha tão bela na cama, nunca me tinha atrevido a tal pois sempre prezei a amizade dela, tanto como a dos outros. E sempre gostei de ter uma miúda porreira como ela como amiga, apreciava a perspectiva feminina dela nas conversas e a sua mente aberta (infelizmente muitas gajas são mais tacanhas do que querem admitir). Era bom partilhar ter este tipo de convivência sem o sexo ser para ali chamado. Até agora.
E excitante porque agora que pisámos o risco, a experiência tem sido fascinante em todos os aspectos. E a nossa familiaridade acaba por fazer parte do jogo, antes e depois. No durante, basta despir a pele de amigos e vestir a de amantes. O sexo não é bruto nem demasiado delicado ou refinado. Acaba por ser algo bastante natural, um gozo mútuo, sem pressas nem preâmbulos. Como se o clímax não fosse o objectivo, mas sim parte do processo. É algo de adulto, esclarecido mas ao mesmo tempo, intenso e poderoso, e também divertido. A nossa relação de amizade acaba por ser uma zona de conforto, como se fosse a rede de um trapézio. Mas eu sei como no sexo por vezes é fácil perder a pega do trapézio e enfrentar o abismo.

A única coisa que me preocupa é se isto continua por mais algum tempo, ainda me meto numa alhada. Eu sei bem que as mulheres, mesmo as mais esclarecidas nestes assuntos, muitas vezes não resistem em urdir uma teia de afectos, tentando capturar o amante na armadilha do amor. Foi o que algumas tentaram e sempre fui-me safando airosamente. Se continuamos nisto, a Marisa ainda pode um dia pensar que a nossa relação pode ir ainda mais além do que nós temos, por muito que ela ache que não e aí vai ser um sarilho. Até já pensei em acabar com isto. 
Mas não o faço. Sei lá, talvez esteja a amolecer. Talvez não queira ainda abrir mão deste doce aconchego, do corpo feminino e adorável dela junto ao meu, deste engraçado jogo de sedução, desta nova descoberta.
E a verdade é que apesar de fugir às armadilhas do amor, não quer dizer que quero fugir para sempre. Nunca disse isto a ninguém mas sempre tive uma pontinha de inveja do que o Sérgio teve com a Diana. Pergunto-me como seria ter vivido um amor assim, tão intenso, sem reservas, mais forte que tudo. Não admira que tenha custado tanto ao Sérgio ter de continuar a viver sem ela.       

Mas se aspiro a esse amor, também o receio porque sei como pode ser destructivo. Por amor ao meu pai, a minha mãe deixou tudo e todos e mergulhou com ele na espiral da droga e da miséria. Amparou toda a porrada que ele lhe dava, ébrio ou sóbrio. Diz quem sabia que também tinham momentos felizes, de paixão e união total. Que não podiam viver um sem o outro, que eram super apaixonados, uma versão portuguesa e rústica do Sid Vicious e da Nancy Spugeon.
Mas não me lembro disso. Só me lembro dos gritos, do sangue e do cheiro a podridão. E o mito Sid & Nancy está demasiado romantizado: ele não a matou durante uma pedrada de heroína? Neste caso, foi a Nancy que matou o Sid. Era um ou o outro, lutando por uma navalha.
Ao menos, estou-lhe grato por ter-me deixado com a tia Luísa antes do confronto final. É o seu único acto de amor que recordo. E do meu pai não me lembro de nenhum, embora digam que sim, que gostava de mim, quando estava minimamente sóbrio.
A tia Luísa e o tio Alfredo foram mais que uns pais para mim e sempre vi o Hugo como um irmão. Graças a eles, o meu destino trágico reverteu-se e tive a oportunidade de crescer num ambiente limpo e estável. Fui e sou feliz.
No entanto, sempre me senti que não devia estar neste mundo, que fui um percalço, um filho de ninguém. Sobretudo depois da minha mãe morrer na prisão. Por isso, é que tenho esta raiva dentro de mim. Por isso, quis sempre provar o que valho, que sou capaz, que nenhum desafio é demais para mim. Por isso, é que sempre fui tão competitivo, na escola, no trabalho, até nos jogos a feijões. E nos jogos de sedução. Eram formas de ser validado. No fundo, ando sempre à procura da aprovação, embora me faça de forte e diga que não preciso de ninguém. Parece uma contradição, mas no fundo todos nós somos um poço de contradições.

O melhor que tenho a fazer, se calhar, é não pensar muito nisto. Seja feita a vossa vontade, que será, será, carpe diem e et cetera e tal. Não vale a pena andar a remoer em dúvidas, bem basta termos que sofrer com as certezas, como diz a tia Luísa. Neste momento, estou bem assim como estou, com estes novos benefícios na minha amizade com a Marisa está muito bem assim e se der mal, logo se vê. É aproveitar enquanto dura. Ou “enquanto duro”, como dizia o Vinícius de Moraes, que era cá dos meus.