quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Lua Nova

Eis-me aqui, parada junto ao semáforo, tamborilando os dedos no volante, à espera que acenda a luz verde. São duas da manhã, a rua está deserta, circulo sozinha pela cidade. Então vem-me à cabeça um cenário de transgressão: e se eu cruzasse este sinal vermelho, protegida pela solidão desta rua? Como estamos na Lua Nova, nem sequer a Lua seria testemunha. E aquelas estrelas que aproveitam a ausência de luar para povilhar o seu brilho no firmamento estão longe demais para me avistarem cá de baixo. A minha mão desce até ao manípulo das mudanças, o meu pé já sente a urgência de carregar no acelerador.
A luz verde acaba por surgir no preciso instante antes de ceder ao meu impulso final. Em vez de um arranque vertiginoso sob o chiar dos pneus e o zunido do motor, avanço sem pressa pela via, seguindo o meu caminho.

Creio que a primeira vez que senti este desejo transgressor quando tinha cinco anos e imaginava-me a empurrar o gato malhado da minha avó que dormia descansado num novelo de si próprio num degrau das escadas. Quase que podia sentir as minhas mãozinhas sobre o seu volumoso pêlo a pressioná-lo para fora do degrau, o bichano a despertar estremunhado num grito assustado e a fugir num voo picado escada abaixo. Depois seguiram-se outros cenários realizados na minha mente, onde calcava um relvado junto do sinal “Não pise a relva”, largava um grito em plena biblioteca, desatava-me a rir no meio de uma missa, puxava o cabelo de uma antipática colega da escola, pegava num sabonete no supermercado e atirava-o contra a prateleira das lacas para o cabelo e por aí fora. Claro que nunca fiz nada disso. Primeiro porque faltava-me sempre a coragem para pisar de vez o risco, e depois porque a imaginação do acto já me dava pica suficiente, provavelmente mais do que obteria com a realização. Quando uma vez confessei isto à minha mãe, ela concluiu que era uma partida do meu subconsciente. Seria precisamente por eu ser tão bem comportada que me sentia fascinada com maus comportamentos. E no fim, ela sossegou-me, afirmando:
- É normal ter vontade de ser mau. Fazer maldades é que já não é normal.

De facto fui sempre uma menina bem comportada. Obedecia sem grandes protestos às ordens dos meus pais, mantinha o meu quarto arrumado, era disciplinada e atenta nas escolas, nunca chegava das saídas à noite depois da hora combinada, nunca bebi álcool para além da conta, nem sequer nunca fumei um cigarro inteiro. Mas nesse caso, também não tenho interesse nisso, detesto o cheiro a tabaco. Até acho pior que o cheiro da ganza. E aliás, a única vez que fumei ganza foi em Amesterdão, pelo que posso seguramente afirmar nunca fiz nada de ilegal.
Vistas bem as coisas, a minha mãe tinha razão. Agradava-me mais a ideia de me portar mal do que propriamente o acto. E qualquer pedrada de adrenalina que pudesse obter se o fizesse não compensaria certamente as consequências que teria de enfrentar.
No entanto, agora enquanto conduzo pelas ruas desta cidade, não consigo deixar de pensar que pisei o risco e que tenho de me aguentar à bronca. A bem dizer, não houve nenhum risco para pisar. Foi sexo consentido entre dois adultos oficialmente desimpedidos. Mas a frieza das palavras não se encontra no labirinto dos sentimentos. E o que sinto é que traí o Fernando, ao voltar-me a entregar de novo ao Gustavo.

O Gustavo continuava igual a si próprio: sedutor, descontraído, convidativo, aplicado. Desta vez tinha regressado a Portugal como membro da banda que acompanha uma cantora de jazz holandesa na sua digressão europeia e claro que não perdeu a oportunidade de voltar a ligar-me, para de mais uma vez nos encontrarmos e matarmos saudades dos corpos um do outro, como temos feito a espaços durante o último ano e meio. Lançava-me de novo o seu canto de sereio, na sua voz grave e calma e mais uma vez atordoava-me os sentidos e ateava o fogo dos meus desejos de mulher, deixando-me incapaz de dizer não.
Porém, desta vez já havia o Fernando e o meu sim não foi tão imediato. Fui enganando uma eventual culpa com a racionalização. Eu ainda não namoro com o Fernando. Quando muito, andamos a ver se andamos a namorar. Se dependesse só dele, já teríamos relação oficial mas ele tem sabido esperar que eu resolva o puzzle da minha cabeça e que tome uma atitude, ciente que já não é para mim apenas um amigo e certo que não tardará a sair da minha friendzone para o nível seguinte.

Como sempre, bastou uma porta fechada e estarmos sozinhos entre quatro paredes para que o Gustavo e eu nos agarrássemos, como se entre nós irradiassem todas as ondas magnéticas reconhecidas pela Física. As roupas caíram à pressa, as peles sedentas de contacto, as bocas sequiosas do licor salival, as mãos esvoaçando por entre as curvas e contracurvas dos músculos, os sexos roçando-se em fúria.
Como sempre, o Gustavo foi magnífico no seu desempenho, com o seu toque a deixar cada centímetro da mulher que sou em brasa. A responder às minhas ânsias, a celebrar-me com beijos, a dominar-me com o seu belo corpo, a impor-me o seu ritmo vertiginoso, a rasgar-me bem fundo, a garantir-me que os orgasmos seriam alucinantes.
Como sempre, respondi na mesma forma, deixando-o desvairado para além da razão, sem outro pensamento senão em possuir-me, inebriado no meu cheiro e sabor de mulher. Provocando-o com os meus dentes cerrados e as minhas unhas afiadas. Zunindo-o com os meus gemidos de prazer rumo ao clímax. Movendo-me para que ele sentisse todos os estremecimentos do meu ventre. Desdobrando-me entre a amante exigente e a amante submissa, obrigando-o a efectuar a soma das partes.
Como sempre, ele foi perfeito, o sexo foi além de fantástico.

Só que desta vez, assim que a euforia desapareceu no éter da noite pelo céu da Lua Nova, e os corpos saboreavam a doce trégua depois da violência do prazer, tudo ficou diferente. A saudade que eu tinha deste meu amante e do seu corpo foram aniquiladas por outra saudade.
Uma saudade que vinha agora do coração e que me levava a outro corpo, a outro amante. A um outro amado.
- O que tens, Luísa? – perguntou o Gustavo.
Tentei dizer alguma coisa mas só me apetecia chorar e não consegui evitar que uma lágrima se condensasse no meu rosto. Com a sua habitual perspicácia, percebeu que eu não estava bem mas nada disse. Passou apenas a mão pela face, limpando-me a lágrima. Depois pegou no trompete e, ainda nu, tocou-me um excerto de uma música que tinha ouvido antes no concerto. Recordei a canção que a cantora cantou no concerto.

Whisper to the moon, my heart pleads for you.

Sentei-me na cama, desfiz o nó da garganta.
- O Fernando ama-me.
Ele parou de tocar e sorriu para mim.
- O Fernando tem bom gosto.


Assim que senti a brisa da noite, olhei para o céu sem lua, mas cheio de estrelas. De certa maneira, creio que amei o Gustavo. Não pela atracção animal que ele me inspirou, pelos prazeres que ele me fez descobrir, nem sequer pelo bom entendimento que soubemos cultivar fora da insanidade carnal. Amei-o com a ternura de alguém que foi importante para nós e que nos pintou um novo matiz da vida. No caso dele, talvez a luz branca do luar. Mas a rotação da vida é constante e só agora percebi que estava agora na órbita de um novo ciclo. Peguei no meu carro e voei no reflexo celestial do alcatrão. Se eu pisei algum risco, só tenho é que seguir em frente.  

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