segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Eva de Natal

Minha querida irmã Eva

Este é o teu primeiro Natal. Infelizmente também será provavelmente o teu último, mas não quero pensar nisso agora. Estás aqui connosco e isso faz deste Natal o melhor dos onze Natais que já vivi. E fico feliz por ser possível viveres pelo menos um. 

É que desde que a tua mãe ficou grávida, os médicos disseram que tu tinhas um problema tão grave (trissomia 18) que podias nem sequer nascer viva, ou então que só viverias algumas horas. Mas dentro do teu corpinho tão pequenino e frágil estava uma menina muito valente determinada a viver o maior tempo possível. Até agora são 28 dias. Mesmo com tantos tubos para respirares e seres alimentada, fazes questão de viver o máximo tempo possível. E desde o dia 27 de Novembro que tens sido a nossa prenda de Natal e continuarás a sê-lo muito depois deste Natal. 

Não sei se já reparaste mas somos as duas filhas do mesmo pai, mas de mãe diferentes: a minha chama-se Rita e a tua Margarida. Tal como a tua mãe Margarida é também a mãe do Duarte mas o pai dele não é o nosso. Ao que parece, os teus pais namoraram quando eram mais novos, mas depois cada um seguiu o seu caminho, o nosso pai casou com a minha mãe Rita, a tua mãe casou com o pai do Duarte, separaram-se deles, voltaram a encontrar-se e foi como se o amor que eles tiveram em adolescentes regressasse em força com eles já bem crescidos. Por isso é que apesar de todos os problemas e até a sugestão de alguns médicos em não prosseguir a gravidez, para a Margarida nunca houve dúvidas: tu eras uma prova viva do amor deles e, fosse por quanto tempo fosse, ficarias connosco. 

Claro que hoje estamos todos muito bem, mas ao início foi muito difícil. Embora compreendesse que os meus pais não eram felizes juntos e apesar de eu ter gostado logo da Margarida, custou-me muito ver outra pessoa no lugar que sempre vi como sendo da minha mãe. Para o Duarte foi ainda mais complicado e demorou muito tempo a aceitar a separação dos pais e mais ainda que de repente teria de dividir as atenções da mãe com um homem que não o pai dele e com uma irmã que ele mal conhecia. Berrou, esperneou, portava-se mal com o meu pai, discutia comigo e chegou a bater-me. Mas com muita paciência por parte da Margarida e do nosso pai, as coisas foram lentamente avançando, todos nós habituámo-nos a esta nova realidade e hoje em dia eu e o Duarte somos mais unidos que muitos irmãos do mesmo sangue. E claro, tal como para os teus pais, para mim e para o Duarte não há nada mais precioso do que tu. 

Podes não ver muito bem a árvore de Natal que está na sala, não poder comer os doces que estão na mesa, não perceber que têm chegado muitas prendas para ti, mas espero que tenhas de alguma forma entendido que esta noite e este dia são diferentes de todos os outros do ano. Mesmo que seja para ti mais um dia de luta para viveres cada vez só um pouco mais. E espero que saibas que o nosso Natal é muito mais feliz por te termos aqui ao pé de nós. 

O teu avô Manuel disse há pouco que tu eras a nova "Eva de Natal" e explicou-me que no tempo dos nossos pais, havia uma revista chamada Eva cuja edição de Natal vendia-se muito todos os anos porque dava prémios por essa altura. Eu nunca vi essa revista pois acabou vários anos antes de eu nascer, mas os meus pais e a Margarida lembram-se bem dela. Pois este Natal, temos cá uma Eva que não é uma revista mas sim uma linda menina com pouco menos de três quilos que nos dá o prémio de viver há 28 dias connosco neste mundo.

Entristece-me tanto pensar que talvez não te restarão muito mais dias connosco, que não viverás para poderes crescer, falar, andar e brincar comigo e com o Duarte. Por isso não tenho dormido muito nestes dias, quero apanhar cada momento deste Natal contigo para trazer sempre este Natal no coração. Nem eu, nem a Margarida, nem o Duarte nem o nosso pai trocaria os últimos 28 dias mais aqueles que Deus ainda te vai dar aqui connosco por viver cem anos sem ti. E pelo menos nos nossos corações viverás para sempre. 

Feliz Natal, Eva. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Estava A Pedi-las

Olá a todos. Venho por este meio responder a todos os comentários que tenho ouvido em surdina quando estou na rua, que tenho lido nas redes sociais e que a minha família e amigos têm escutado por vários meios. Em breve, vou depôr em julgamento contra aquele que me violou há uns meses atrás. Mas eu sou obrigada a concordar com o que têm dito: sim, a culpa é toda minha. Posso não ser julgada em tribunal, mas eu sou a verdadeira julgada em praça pública - e com toda a razão. Eu estava a pedi-las.

Eu bem que podia argumentar que fui agarrada, completamente desprevenida, por ele à saída do bar, que debati-me com todas as forças para que ele me soltasse (esforço inútil já que ele é era bem maior do que eu, conseguindo facilmente dominar-me, mas ainda assim lutando até ao fim), que lhe implorei que parasse e disse repetidamente "Não", que durante todo este incidente fui brutalmente agredida e que no fim, atirou-me para fora do carro como lixo, que além das marcas da agressão sexual fiquei toda cheia de hematomas dos murros e estaladas que ele me deu. Mas isso são desculpas de mau pagador. Tal como dizem por aí, eu estava a pedi-las. 

Toda a gente sabe que se uma mulher sai à noite é para se exibir, para chamar a atenção dos machos em redor e para que pelo menos um deles lhe salte em cima. Então, se ela veste uma saia curta, como eu vestia nessa noite, mais vale também andar com um cartaz a dizer "COMAM-ME!". Isso de uma mulher querer, com essa saída, apenas uma noite de diversão e descontração com as amigas, ou de querer usar saia curta simplesmente para se sentir bonita, é tudo conversa fiada. E quando uma mulher diz não, na verdade ela está a dizer sim, a fazer-se difícil e a adiar o óbvio. Logo, como eu estava de saia curta e ainda por cima um decote que apesar de não muito grande, não subia até ao queixo, eu estava a pedi-las. 

Toda a gente sabe que os homens são uns coitados, têm a carne fraca, não se controlam. Pelos vistos aquilo que eu li sobre a teoria da evolução são tudo balelas. É que não podem ver uma mulher a mostrar um pouco de carne, que ficam doidos, incapazes de controlar os seus impulsos, cegos a tudo mais. Mas a culpa não é deles, coitadinhos. É de quem lhes acena com tanta carne pronta a ser devorada e depois faz-lhes negaças. E se eles apanham uma a jeito, que mais pode uma mulher fazer senão ceder e deixar que eles saciem as vontades? Quando ele olhou por mim, tão provocante e lasciva, que podia ele fazer senão fazer-se a mim à bruta? Eu estava a pedi-las.

Toda a gente sabe que uns bons pais não deixam as filhas fazer essas figuras. Ao deixarem-me vestir aquilo que bem me apetecer, sair para onde eu quiser e já agora, pensar por mim própria, está visto que os meus pais não souberam educar-me. Ou então não sabiam a filha desnaturada que tinham em casa. Com uma educação tão defeituosa, eu estava a pedi-las.

Toda a gente sabe que uma boa rapariga não gosta de sexo. Mantém-se pura e casta até ao casamento, é imune a pensamentos lascivos. As outras, as más raparigas, oferecem-se a cada um sempre que podem. Seduzem os coitadinhos dos homens com a sua armadilha inescapável de luxúria. Desviam bons rapazes, são poços de infecções e sarilhos. São umas desvairadas e só servem de receptáculos para as satisfações momentâneas dos machos. Não há meio-termo entre umas e outras. Não foi por amor ou por desejo de intimidade e afecto que tive sexo ao longo da minha vida, foi porque sou uma tarada ninfomaníaca que não se dá ao respeito. Bem que podia dizer que foi só durante as três relações de namoro, todas elas relativamente longas e apenas quando a relação já estava minimamente sólida, mas toda a gente, que sabe mais da minha vida do que eu própria, afirma que foram mais que isso, que sempre me viram agarrada a este e aqueloutro. Logo, eu estava a pedi-las.    

Toda a gente sabe que eu afinal queria e como não foi como pretendia, estou agora a fazer-me de vítima. Aliás, ele até nem fez nada, eu é que me fiz a ele. Toda a gente o conhece, é tão bom rapaz, de boas famílias, seria lá ele capaz de uma barbaridade dessas. Só posso ser eu que estou ressabiada por ele não me ter dado trela e agora resolvi estragar a vida ao rapaz, coitado. Se a minha vida já está estragada, se vou ter de carregar as marcas exteriores e interiores daquilo que sofri, se eu vou passar o resto da vida com medo de tudo e de todos, pouco importa. Eu estava a pedi-las.  

Dadas as provas das minhas marcas e do ADN dele, as testemunhas que o viram a arrastar-me à força ou a ser cuspida para fora do carro dele mais morta que viva e as fracas justificações dele, em princípio ele será condenado pela justiça. Mas mesmo que se faça justiça em tribunal, não consigo sentir que a verdadeira justiça será feita. Não enquanto eu me sentir como a verdadeira condenada e culpada. Não enquanto pensarem que, mesmo contra as evidências mais evidentes, eu estava a pedi-las.      

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Sem Segredo

Vanessa

Perguntas tu e pergunta muita gente qual é o meu segredo para manter um relação tão apaixonada com o Sérgio ao fim de dez anos de casamento, tendo os dois trabalhos tão exigentes e dois filhos que ainda requerem tanto da nossa atenção. A verdade é que eu não sei. A sério.
É que são muitas as vezes que caímos redondos na cama sem vontade para mais nada senão dormir. Tantas vezes que andamos num turbilhão de preocupações, ele é um dos miúdos que adoece, ele é algum pagamento que ficou em atraso, ele é a roupa que fica por passar, ele é um risco num dos carros e parece que andamos sempre nisto de problemas em problemas que nem dá para trocarmos meia dúzia de palavras como deve ser.
Para além disso, há aqueles momentos de tédio e de tensão, em que um de nós diz ou faz algo que deixa o outro irritado sem que não se possa dizer nada até lhe passar o amuo. Ou então acontece nos apetece estar cada um na esfera pessoal sem ter o outro por perto, ou pura e simplesmente não nos apetece rigorosamente nada.
E depois é como alguém disse, "viver é escolher um de mil caminhos e pensar como seriam os outros 999". Como sabes, pensei muito no César nas semanas a seguir ao nosso jantar de reunião de turma e nem sempre da forma mais ingénua. Tal como sei que o Sérgio repara e aprecia as atenções de outras mulheres no seu dia-a-dia e que já terá tido os seus pensamentos libidinosos envolvendo outras mulheres além de mim. Ou simplesmente, ocorre-nos pensar se fizemos as melhores escolhas possíveis. Por muita convicção e determinação que uma pessoa tenha em se comprometer com alguém para, pressupõe-se, o resto da vida, a ideia de que essa mesma pessoa ficará ao nosso lado até que a morte nos separe é assustadora. Até porque ao longo do tempo, vamos mudando e transformando. Eu já não sou aquela que há dez anos marchou até ao altar da igreja, tal como o Sérgio de então é bastante diferente do Sérgio de agora. 
Gosto de pensar que são as pequeninas coisas que engrandecem e mantêm a nossa união viva e forte ao fim deste tempo todo: os breves períodos de tranquilidade entre fases turbulentas, as palavras certas ditas nos momentos certos, os pequenos gestos que escondem grande valor, os inesperados ataques de desejo que surgem do nada, os rasgos de humor e ternura dos miúdos que nos enche de orgulho, os subtis actos de compreensão.
Mas pode ser que temos é muita sorte e ainda não houve nada que tenha feito ruir os alicerces daquilo que construímos juntos. Infelizmente a vida é cheia de terramotos que abalam até as mais sólidas das fundações e de um momento para o outro, tudo o que acreditamos e temos como seguro desvanece (como aconteceu com a Carina). 
Eu sei bem porque perguntas isso. Já passou a fase de lua-de-mel com o Daniel, onde andavas numa de comédia romântica com laivos de filme erótico. Os pequenos desencantos dele já não se deixam camuflar pelos seus grandes encantos, e mesmo que isso não te faça gostar menos dele, também sabes que é algo que vais ter de lidar. E perguntas-te a ti mesma, se vale a pena dar passos em frente, arriscando a ficares sem chão, enquanto te apercebes que já não dá para recuar para os trilhos que antes pisavas com toda a segurança. 
Tantas perguntas sem resposta, mas não possa ser eu a dá-las. Tomara eu saber a resposta para as minhas. Talvez o segredo seja não haver segredo. Talvez as coisas sejam aquilo que temos à frente, sem nenhum truque escondido e tudo o que achamos complicado afinal é do mais simples que há. Não acontece tanta vez andarmos às voltas à procura de algo que sempre esteve no ponto de partida?
Por isso, se não sabes por onde caminhar, deixa o mundo girar para veres onde ele te transporta.

Joana