quinta-feira, 28 de junho de 2012

Nós, os cromos

Nós somos os anos 70, 80 e 90.

Nós somos os cromos que colámos nas cadernetas, dos jogadores do Mundial do México 1986 aos pequenos póneis e às Abelhas Maias. Somos os berlindes, as borrachinhas e as folhinhas de cheiro.

Somos os brinquedos básicos, quase rudimentares, sem pilhas, comando à distância ou tecnologia de ponta, mas que nos permitem inventar todo um universo de aventuras. Somos os carrinhos de corda, os bonecos de PVC, as Tuchas e as Barbies. Somos o ZX Spectrum e a Sega Megadrive. Somos as Barriguitas e os Pin y Pons, os Legos e os Playmobils,  as Tartarugas Ninja e os Moto-Ratos de Marte, o Quem É Quem e o Traga-Bolas.

Nós somos as brincadeiras estúpidas com uma dose de violência de q.b., que esperamos ser um justo preço a pagar por um ego insuflado de virilidade e admiração. Somos o elástico comprado a metro nas lojas de tecido e que pulamos em ladainhas enigmáticas. Somos as bolas que pontapeamos, as cordas que saltamos, as macacas que pulamos ao pé-coxinho. Somos os gritos do "1,2,3, macaquinho do chinês" e do "Lá vai alho!". Somos o coito da apanhada e o salva-todos das escondidas. Somos os triciclos e as bicicletas, os carrinhos de rolamentos por essas ladeiras abaixo.

Nós somos as guloseimas que têm tanto de saborosas como de duvidosas, as palhinhas do Capri-Sonne e do leite escolar, os balões de pastilha elástica. Somos os Tou dos Bollycaos e os Pega-Monstros das batatas fritas. Somos as caricas da Sumol e os crachás do Fruto Real. Somos o arroz tufado do Toffee Crispy, as cores das Pintarolas, os dedos de caramelo e biscoito crocante do Raider (mais tarde Twix). Somos a pastilha do Epá, o cone do Cornetto, a cobertura fina do Fizz Limão. Somos os chupas Mouro, os caramelos Penha, os corantes das PetaZetas e os Sugus de morango.

Nós somos os arranhões, esfoladelas, nódoas negras e galos na cabeça. Somos os remédios que na altura ainda sabiam mal, o adesivo da tuberculina que nos dará sinal verde para irmos à praia e o Quitoso a exterminar os nossos piolhos e lêndeas.

Nós somos as calças de fazenda que picam, os kispos pneumáticos, os collants para rapazes, as meias de renda para as raparigas. Somos os jeans & jackets de ganga, os ténis Sanjo e as sapatilhas de ginástica. Somos as perneiras, as joelheiras nas calças, as cotoveleiras nas camisolas e os enchumaços dos casacos.  Somos os RayBans e as bandeletes. Somos os penteados embaraçosos e a maquilhagem exagerada.

Nós somos a televisão de dois canais, sem telecomando. Somos o miúdo sugado pela nave do "Tempo dos Mais Novos", os desenhos animados dos países do Pacto de Varsóvia e os mui americanos Looney Toons, o Conan e a Candy-Candy. Somos os assobios do Verão Azul, o carro d'O Justiceiro, o canivete do MacGyver, as bóias das Marés Vivas, os blazers do Miami Vice. Somos as telenovelas com sotaque brasileiro, o Festival da Eurovisão, os Telejornais e os jogos de futebol. Somos o nariz do Júlio Isidro, os brincos da Valentina Torres e o gongo da Amiga Olga.

Nós somos o sabre luminoso do Luke Skywalker, os aviões do Top Gun, o chicote do Indiana Jones, os chapéus da Pretty Woman, as garras do Freddy Krueger, o iceberg do Titanic. Somos a Gente Gira que adora um bom Gelado de Limão. Somos mais Fatais que o Instinto ou a Atracção, mais certeiros que os murros do Rocky ou a metralhadora do Rambo. Somos os dentes do Tubarão, a luzinha do E.T., as pegadas do Parque Jurássico.

Nós somos Cinco ou Sete, sempre no meio de Uma Aventura. Somos cá da turma da Mônica e entramos no clube do Bolinha. (Até as meninas entram!) Somos os sobrinhos do Pato Donald e os heróis da Marvel. Somos as capas de filmes da TV Guia e os posters da Bravo. Somos o Correio do Chico Omelete e as páginas centrais da revista de Domingo. (Porque a Gina é muito cara...)

Nós somos as colectâneas de vinil e de CD, somos as cassetes BASF gravadas e regravadas. Somos o electro-pop, o disco-sound, o punk gótico, o heavy metal, o grunge, o rap, a dance music e a música pimba. Somos os slows açucarados e as grandes malhas para exibir os melhores passos de dança ou para andar de carrinhos de choque. Somos os soutiens da Madonna e as bandanas dos Dire Straits. Somos o moonwalk do Michael Jackson e a coreografia da Macarena.  

Nós somos aquele rapaz geek e aquela rapariga desajeitada que são um alvo fácil de troça. Somos aqueles que ficam sentados nos bailes a verem os parzinhos a dançar num clima ultra-romântico. Somos os sonhos coloridos a pensar no rapaz ou na rapariga por quem temos um fraquinho e outros sonhos mais libidinosos a pensar nas mamas da Sabrina/Samantha Fox/Pamela Anderson ou nos torsos desnudados dos Bros./Take That/Backstreet Boys. Somos a inveja mais ou menos evidente pelos colegas que têm sempre brinquedos fantásticos, roupas de marca, e os rapazes ou as raparigas a seus pés.

Nós somos os adultos que se riem dos cromos que nós éramos, que olhamos para esses tempos com uma nostalgia ternurenta que passou uma camada de verniz sobre as coisas más e imprimiu um brilho eterno às coisas boas. Somos o Nuno Markl a documentar com humor e empenho todos estes pequenos grandes retalhos daquilo que somos. Somos as festas Back to the 80's e Let's Control the 90's. Somos os blogues especializados, as páginas do Facebook que começam por "Eu ainda sou do tempo de...", os livros de história e os álbuns de fotografias.

Para o pior e  para o melhor, nós fomos, somos e seremos uns grandes cromos. E ainda bem.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Criaturas terrestres

Vá lá, arrisca que uma miúda como a Sara vale a pena. Ela diz que não está chateada, afinal de contas ainda não eram oficialmente namorados, mas claro que ficou magoada por saber que tu andaste a fazer revisão da matéria dada com a Telma, uma dessas mulheres-andorinhas que andam sempre de pouso em pouso e volta e meia regressam às paragens antigas, no meio de um belo chilreio para depois bateram as asinhas. Tantas dessas mulheres costumam ter-te como paragem no itinerário e nunca recusaste o albergue.
Não há mal nenhum nisso, desde que não tenhas na tua vida alguém que te pode dar a primavera no ano inteiro. Já dizia o Bukowski que um homem só precisa de muitas mulheres quando nenhuma delas é grande coisa. E até esse doido poeta do álcool, da indigência e dos low life, mesmo com trezentas ressacas por ano, teve cabeça suficiente para perceber que lhe tinha calhado uma rapariga decente no meio das mulheres que o circundaram, quando o sucesso finalmente o tornou sexualmente atraente e esforçou-se o melhor que pôde por Linda Lee Beighle. Curiosamente, em Mulheres, o romance onde compendiou as mulheres que agora se aproximavam dele aos enxames nessa fase da vida em que ele se viu quase um rockstar, cheia de sexo e com a eterna amiga garrafa em vez das drogas e do rock&roll, Bukowski deu a Beighle o pseudónimo de Sara.

Agora chegou a altura de descobrires se queres lutar pela tua Sara. Pensa com cuidado no que lhe vais dizer mas mantém o discurso simples e directo. Basta apenas dizer que gostas dela, que ela é diferente de todas as outras que vieram à tua rede, que és capaz de dar mais que aquilo que tens dado. É isso que ela quer ouvir-te dizer, e se reparares bem, vais ver que estas palavras estiveram sempre em ti.  Não te deixes enganar quando ela diz que está tudo bem e não precisas de justificações nem pela sua pose forte e orgulhosa. Sabes muito bem que um dos ardis das mulheres é dizer um coisa e querer dizer outra, esperando que nós não sejamos tão básicos e que saibamos captar a mensagem subliminar.

Não te rales com um boçal orgulho de macho, não tenhas medo de fazer figura parva, não receies que as palavras se enredem na garganta e saiam meio cacofónicas, ela é esperta o suficiente para perceber tudo e não levar a mal a tua atrapalhação. Ela saberá que tu estás a dar um passo que nunca deste antes. Fica mais bonito se lhe disseres olhos nos olhos, mais cinematográfico se te declarares publicamente mas basta pegares no telefone e dizeres tudo. A mensagem é que interessa, seja em acordes de guitarra ou em compassos telegráficos.

Deixa as migrações amorosas para as aves a sério, que têm asas e são livres de voar para onde bem entenderem. Nós somos criaturas terrestres, de pés assentes no chão. Mas mesmo assim, percorremos caminhos, visitamos países, vencemos distâncias. Dá-lhe uma oportunidade de te guiar. Quem sabe se ela não te dá a conhecer os rumos que te levam aonde sempre quiseste chegar, mas que não podias porque andavas às voltas nos mesmos lugares?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O quarto elemento

Quando fizeste a minha carta astral, frisaste que o Fogo é o meu elemento dominante. Não apenas por o meu signo ser Leão, mas também porque outros planetas e casas astrais impelem para este elemento, como acendalhas para uma fogueira. Quanto mais penso nisso, mais fico com a certeza que tens razão, que o fogo é o meu elemento. Sou uma mulher fogosa, pode-se até dizer. Cada um é para o que nasce e eu não nasci para ser uma princesa de gelo. Mesmo numa situação que requer alguma dissimulação da minha parte, prefiro esconder-me atrás de um sorriso amarelo do que fazer uma cara de póquer. Vivo a minha vida intensamente, porque acho que uma vida que se vive sem emoção fica apenas meio vivida.
Também disseste que eu não estava mal servida de Terra e de Água, mas que o Ar era insuficiente no meu mapa astral. Que sem Ar, o meu Fogo corre o risco de arder sem governo, queimando tudo no seu trilho disforme ou então apagar-se, carente de oxigénio para se alimentar. Tal como o vento ateia os incêndios mais fortes e apaga os mais fracos. E eu também sei uma coisa ou duas sobre mexer no fogo e sair queimada. (Não literalmente, diga-se).

Tu és mesmo assim, dizes coisas que a princípio soam tão bizarras, mas vai-se a ver batem certo. Por essas e por outras, estava particularmente ansiosa por saber a tua opinião do Francisco quando o apresentei ao nosso grupo de amigos. Primeiro, porque não és de meias tintas e tens uma franqueza não muito politicamente correcta mas eficaz. Segundo, por causa daquele fraquinho que tiveste em tempos por mim. Que nunca confessaste abertamente mas como sou boa entendedora, meia palavra bastou, tal como outra meia palavra bastou para te dar a entender que tinhas de apontar noutra direcção, porque em mim não terias mais que uma amiga. Mas sei que um dos efeitos dessa fase foi teres delineado uns padrões bem elevados para aquele que eventualmente me assaltasse o coração, não podia ser um qualquer fulano.

Quando conheceste o Francisco, ainda não andávamos oficialmente. Era mais andarmos a ver se andávamos, que isto de tanto tempo a sermos só bons amigos e depois considerar a hipótese de sermos bons amantes é um território com as suas armadilhas e tínhamos de ter bem a certeza onde pôr o pé.
Mas foi com alegria que tu o aprovaste. Achaste-o reservado mas simpático, discreto mas com presença, informal mas educado. Só franzi o sobrolho quando disseste que ele tinha uns olhos como o Droopy, aquele cão dos desenhos animados. É de facto frequente dizerem que ele tem um olhar triste, mas não diria que é o olhar de um cãozinho frágil e abandonado. Ao que prontamente relembraste que o Droopy podia ser triste e sensível, mas não era de todo frágil e ele safava-se sempre muito bem de quem o queria tramar.
Depois de mais um tempo de convivência e em que a toda a nosso círculo já o considerava um amigo, seguiu-se a oficialização. Foi então que me disseste que o strong silent type fica-me bem. Mais uma vez, tinhas razão. O Francisco é mesmo assim, quieto, na dele, mas sempre atento, agindo só nos momentos- chave, como uma força tranquila mas persistente. O pior é que eu sempre tive uma queda para os rebeldes e para os figurões: encantava-me a sensualidade bandida e as viagens alucinantes numa montanha russa de emoções. Já a minha mãe dizia que eu me tornei advogada para defender causas perdidas e fazer os bandidos parecerem santos. No meu caso, até nem era o típico síndroma feminino de amar o Che Guevara e depois pedir-lhe para fazer a barba. Era mais uma vez o meu Fogo, sempre a querer atear-se e arder por todo o lado. Mas quem ficava sempre ardida era eu, quando vinha de novo a lucidez.

Ainda não sabia que o verdadeiro calor vem das brasas e não da chama. E basta uma centelha para que o fogo renasça, mais belo e ardente que antes. Foi o que aconteceu entre mim e o Francisco. No seu jeito, esperou que eu perdesse tempo com esses bandidos até eu abrir os olhos e ver que o que eu andava à procura esteve sempre ali. E vi que ele esteve sempre lá quando precisei dele, sempre com um sorriso nunca triste. À medida que o meu olhar ia ficando mais atento, descobri o seu discreto mas poderoso charme, os elementos de um namorado dedicado e de um amante intenso. Fiquei rendida. Assustada mas completamente rendida e decidida a arriscar a travessia do campo minado que separa os amigos dos que são mais que isso. Mas desviei-me das armadilhas e não olhei para trás. E surpresa das surpresas, o Francisco é Aquário, signo do Ar. O elemento que tu disseste que eu tinha em carência. Mas agora acho que encontrei o meu quarto elemento que, tal como o vento, sabe como amainar as minhas chamas mais descontroladas e aumentar aquelas que me fazem viver.

Já agora, mesmo sabendo que quem sabe de Astrologia és tu, permite-me um conselho. Como o teu signo é da Terra, não queiras uma mulher de Fogo como eu, que podes ficar com o teu solo macio e fértil todo ardido. Olha, procura talvez uma com signo de Água, que saiba como regar a tua Terra, para que se mantenha sempre verde e viçosa.

domingo, 10 de junho de 2012

A lição de Panenka

O pai chegou a casa e viu o petiz de dez anos algo cabisbaixo, a ver televisão com cara de quem não estava a prestar atenção para o que se passava no ecrã. O pai sentou-se ao lado dele, pôs o seu melhor sorriso n.º 33 e pousou a mão na cabeça do miúdo, dizendo suavemente:
- Então, filho, estás bem?
- Estou.
- Parece que estás preocupado com alguma coisa.
- Não é nada. Estou só a ver televisão.
- Não sabia que costumavas ver os programas de culinária da SIC Mulher.
- Bem...até nem estava a prestar muita atenção. Estava a pensar numas coisas.
- O dia correu-te mal na escola?
- Nem por isso. Foi só uma coisa, mas não tem importância.
- Mas diz lá.
- Bem, é que no recreio fomos jogar à bola e a certa altura, o Eduardo sugeriu que fizéssemos um concurso de penaltis. Sabes, ele anda nas escolas de futebol do Desportivo e joga a guarda-redes. Nós gostámos da ideia e, então um de cada vez, ia rematando à baliza e o Eduardo tentava defender. E eu fui o único que não conseguiu marcar nenhum golo. Está bem que o Eduardo é muito bom guarda-redes e fez grandes defesas, mas todos os outros conseguiram batê-lo pelo menos uma vez. Só eu é que não consegui. Ou os meus remates saíam muito fraquinhos ou então chutava com força demais e saía para fora...
- E os outros começaram a gozar contigo?
- Houve alguns risinhos e algumas bocas, mas eu fingi que não liguei. Aliás, era só um jogo, não é?
- Mas ficaste um bocado envergonhado de não teres conseguido marcar um penalti, não foi?
- Foi. Não é que eu queira ser futebolista, como alguns dos meus colegas, mas gosto de jogar à bola e não quero ser menos que os outros.
- No fundo, queres ser competitivo.
- Sim, isso. Mas infelizmente não sou bom finalizador, e não tenho um remate forte e certeiro como o Ruben ou o Bernardo.
- Podes não ser bom finalizador, mas com certeza és bom noutras coisas: a defender, a passar...
- Eu sei...
O pai esboçou um sorriso. Recordava-se também do tempo em que passou por algo semelhante, nas suas brincadeiras à bola em criança. E da ingénua insensatez de criança com que se fazia troça dos menos hábeis. E orgulhou-se do filho, apesar de incomodado, não ter dado parte de fraco, tentando minimizar as troças. Podia contar-lhe que também em pequeno tinha passado pela mesma situação, numa peladinha que tinha sido desastrosa para ele, que também ele sentira-se um aselha do pontapé, mas que no jogo seguinte, já estava tudo amigos como dantes e que no jogo seguinte, esteve bem melhor. Mas optou por contar-lhe outra história.
- Já ouviste falar de Antonin Panenka?
- Quem?
- Antonin Panenka. Era um jogador da selecção da Checoslováquia.
- É, dantes a República Checa e a Eslováquia era um só país.
- Exactamente. E quando a tinha mais ou menos a tua idade, vi a final do Europeu de 1976, na antiga Jugoslávia. Em Zagreb, a Checoslováquia estava a jogar contra a Alemanha, que era campeã mundial e europeia, que tinha grandes jogadores como Beckenbauer, e aquele que era o melhor guarda-redes na altura, Sepp Maier. O jogo terminou empatado 2-2 após o prolongamento e teve que ir às grandes penalidades. Quando um dos alemães falhou o penalti, se a Checoslováquia acertasse a seguir, vencia. Foi então que Panenka preparou-se para rematar. Mas ele sabia que no futebol, usar a cabeça é tão importante como ser bom de pés. Reparou que Maier conseguia adivinhar para onde é que os rematadores iriam chutar a bola e saltava que nem uma aranha para os defender e assim conseguia evitar muitos golos e penaltis. Então em vez de apostar num pontapé forte, Panenka decidiu fazer algo completamente diferente, nunca visto antes. Enquanto corria para rematar, deu uns passos a travar posicionando-se como se fosse chutar para a direita. Mas em vez disso, deu apenas um remate seco em frente. Como Maier, enganado, saltou para a direita, nada pode fazer quando viu a bola aterrar no meio da baliza. E assim a Checoslováquia tornou-se campeã da Europa e Panenka ficou para a história, não por um golo ou remate espectacular, mas por ter usado a cabeça e observado bem. Desde então, esse tipo de penalti passou-se a chamar o penalti à Panenka e só uns quantos jogadores souberam dominá-lo tão bem como ele. Mas por exemplo, o Hélder Postiga marcou um penalti assim no Euro 2004, contra a Inglaterra.
- Ah, pois foi. - replicou o petiz calmamente.
Mas o pai reparou que o semblante do filho estava mais animado.
- Da próxima vez que fizerem um concurso de penaltis, vê-se que consegues fazer como o Panenka e enganar o Eduardo.
- Talvez.
Nisto, a mãe apareceu na sala.
- Filho, anda pôr a mesa para irmos jantar.
- Está bem. - respondeu o petiz.

- Bem, grande história que te lembraste de contar só para o nosso filho não ficar chateado. - exclamou a esposa assim que o filho se dirigiu para a cozinha.
- Eu estava inspirado. Mas eu lembro-me bem desse jogo, como se tivesse sido ontem, por isso foi fácil contar tudo.
- Sim, senhor.
Após um breve silêncio, ela disse em voz baixa.
- Foi em Belgrado.
- O quê?
- A final do Europeu de 1976 foi em Belgrado, disseste que tinha sido em Zagreb. Mas estiveste bem na mesma.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Principiante Amoroso

Caro maninho:

Acabo de regressar de quatro dias passados em Amesterdão. Fiquei em casa da família de um colega holandês lá do laboratório, o Arjen. Connosco também veio um casal aqui das Noruegas, a Trine, também nossa colega, e o noivo dela, o Espen. Lá na Noruega, interessam-se sobretudo pelos desportos de Inverno, mas o Espen é doido por futebol e costuma tratar o Arjen por Robben, como o jogador do Bayern de Munique. Já a um amigo nosso que é checo, careca e chama-se Jan, ele chama-lhe Koller. Por este andar, ainda se põe a chamar-me Oliveira...
A Ju não pôde tirar os dias e por isso ficou em Oslo. Mas se puder, quero um dia voltar à Holanda. Já tinha imensa vontade de conhecer o país pelo que tu falavas dele, mas agora que já estive em Amesterdão, gostava de conhecer outras cidades como Roterdão, Eindhoven e Haia, onde tu fizeste o Erasmus. Ainda por cima se, segundo dizes, essas cidades são bem diferentes de Amesterdão. 
Tu já tinhas contado e recontado tanta coisa sobre a cidade, já vi tantas fotografias e imagens na televisão, mas nada se compara a caminhar por aquelas ruas calcetadas, atravessar as pontes e ver os canais. Sempre achei tão redutor como uma cidade cheia de história, cultura e dinamismo seja famosa sobretudo pelas coffeeshops e as meninas das montras do Red Light District, quando até no dito cujo há muito mais que isso. Como uma padaria onde tomei o melhor pequeno almoço da minha vida, um belo de um café au lait com um croissant com geleia de limão que só te digo. As minhas papilas gustativas tiveram um orgasmo múltiplo! 
Claro que aproveitámos para ir ao máximo número de sítios famosos, como os Museus Rijks, Van Gogh e Madame Tussaud's, a casa da Anne Frank e, por exigência do Espen, o estádio do Ajax. Provámos também os arenques, mas eu e os noruegueses ainda preferimos de longe o bacalhau. A única chatice foi que na última noite a Trine e o Espen emborcaram cerveja como se não houve amanhã e andaram a falar ao Gregório durante o resto da noite. A relação dos nórdicos com a bebida é mesmo assim, quando bebem é para a desgraça, são tão regrados que quando pisam o risco, pisam a valer...Mas enfim, adorei esta oportunidade de finalmente conhecer Amesterdão e foi óptimo para mim desanuviar, já que nestas últimas semanas andava numa rotina entediante.

Tenho andado a fazer coisas bastantes repetitivas no laboratório e claro que isso cansa. Felizmente estamos quase a terminar a pesquisa. O pior tem sido, em casa com a Ju. Não, não nos zangámos. Simplesmente estamos numa fase mais apática na nossa relação. Primeiro foi a euforia de nos conhecermos e começarmos a namorar, depois a de ela se mudar aqui para o meu apartamento e agora andamos há algum tempo assim. Os dias andam uns atrás dos outros, levantamo-nos, comemos, fazemos a lida da casa, andamos em modo de piloto automático. Sabes muito bem que eu não tenho nada contra uma rotina, que gosto de seguir coisas à risca e de saber com o que contar e não gosto de lidar com imprevistos. Talvez se estivesse sozinho isso não me causasse tanto transtorno. Mas eu tenho aquela que eu amo aqui comigo e não consigo deixar de me sentir chateado por a nossa relação estar actualmente num tédio onde até a nossa intimidade tornou-se previsível. E sem me dizer nada, consigo sentir que a Juliana sente o mesmo que eu.
Talvez estejamos a sentir estas apreensões todas pois esta é a primeira relação séria para ambos. Não somos ingénuos para achar que ia ser tudo azul e cor-de-rosa quando encontrássemos o amor e sabemos perfeitamente que todas as suas relações têm volta e meia as suas fases de tédio, inquietude, dúvida e até mesmo de irritação mútua. Mas a verdade é que andamos neste limbo, entre aborrecidos e apreensivos, como se ainda fossemos adolescentes a desbravar primeiros caminhos nos meandros do coração.  
Se ao menos tivéssemos tido algum ensaio no passado, por mais pequeno que fosse, para sentirmos que tínhamos passado por algo minimamente semelhante. Só que ela, por causa do trauma da mãe e da sua timidez natural, nunca permitiu entregar-se verdadeiramente a alguém antes de mim, à parte um romance de férias que ela teve há uns anos mas que foi breve demais para ela ficar devidamente instruída. E eu passei demasiado tempo a ser um tótó que não percebia as mensagens subliminares de quem estaria eventualmente interessada em mim, como algumas amigas da Mónica, ou a andar obcecado com a Mafalda que ao trocar o código Morse pela boca no trombone, fez-me o obséquio de me inaugurar. Gastei imenso tempo a imaginar que vivia com a Mafalda um amor de perdição sem perceber que ela era um pombinha da Catrina: era de quem a apanhar, ou de quem ela apanhasse, até bater as asinhas de novo. Depois, com a minha própria metamorfose de nerd para chic magnet, também eu fui pousando e voando até aterrar em Oslo e deixar-me conquistar por uma brasileira muito tímida mas tão linda que só ela. 
Com isto tudo dei a imaginar como terá sido com os nossos pais ao longo dos anos. Sempre mantiveram uma frente unida diante de nós, mas também por vezes não era difícil ver que também passavam por períodos bastante difíceis, onde pouco bastava para que um deles ficasse incomodado com o outro. Não que o amor deles alguma vez estivesse em causa, mas entre problemas de trabalho, três filhos para cuidar, contas para pagar e mais outras chatices não menos ibidem, houve sem dúvida alturas em que a relação entre ambos ficou descurada. Decerto que tu também já passaste o mesmo com o Filipe e que tiveste de recorrer a todos os teus conhecimentos de psicologia (ou então se calhar tiveste que deitar esses conhecimentos às urtigas!) para ultrapassar essas fases. 

Bem, mas não te vou maçar mais com estas minhas interrogações de principiante amoroso. Como em tudo o resto, é viver e aprender. Aliás, a minha profissão não tem tanto de tentativas, erros e acertos? Como sempre um abraço ao nosso pai e um beijinho à Mónica. 

Nelson

P.S.: Quando cheguei a casa, encontrei a Ju como sempre a ler, os óculos postos, o cabelo apanhado ao alto, os pés apoiados no tamborete do sofá, como tantas vezes nos últimos meses. Não se foi das saudades, dos meus olhos terem lavado a vista com a viagem ou destes devaneios a que a minha mente resolveu entregar-se, mas só me apetecia beijá-la. E quando ela olhou para mim e disse "Senti sua falta", percebi que até numa fase menos boa, mesmo com tédio e desencanto, é com ela que eu quero estar e isso é que importa.