terça-feira, 24 de abril de 2012

Vermelho-Cravo

Caro Sr. José:

Antes do mais, muitos parabéns. Que giro fazer anos a 25 de Abril. Nem imagino como terá ter sido viver a revolução logo no seu dia de anos. E nem uma melhor prenda que um país mais livre. Infelizmente, muitos dos ideais que inspiraram tão nobre revolução não têm sido muito bem aplicados e alguns mesmo parecem esquecidos. Mas dá-me arrepios haver gente saudosa dos tempos do Salazar...por muita ordem e disciplina que houvesse nesse tempo e que, admito, falta actualmente, nem quero imaginar como seria viver num regime tão hostil e castrador e ao mesmo tempo tão pacóvio e paternalista. Felizmente, não nasci nesse tempo.

Também sei que desde há três anos, você não tem muita paciência para celebrar o seu aniversário por este ser perto do aniversário do falecimento da sua mulher, a Dona Celeste, a quem uma doença fulminante e impiedosa levou muito antes do que seria justo ser a sua hora. Tenho imensa pena de não poder tê-la conhecido com mais saúde, pois infelizmente a doença atacou-lhe poucos meses depois de termos sido apresentados. Mas durante esse curto espaço de tempo, deu para perceber todo o excelente carácter e força de espírito dela, que tanto revejo no Ricardo. Bem como a felicidade da vossa união, algo que infelizmente não aconteceu com os meus pais.

Mas eu gostei igual e imediatamente de si. Não levei a mal o seu embaraço nem o seu pouco à-vontade quando o Ricardo apresentou-me como namorado. Era natural, pois sei perfeitamente que o privilégio de duas pessoas do mesmo sexo poderem ter uma relação aberta é um privilégio possível (e minimamente aceite) apenas a partir da minha geração, depois de tanto tempo em que foi algo condenável e impensável. E também sei que uma coisa é saber que um filho gosta de homens e fazer as coisas lá por conta dele, longe da vista, outra é ter um filho a apresentar-lhe um genro em vez de uma nora, fundamentando-se assim a sua orientação. Mas o simples facto de que, apesar da sua relutância, você tenha aceitado sem nenhum juízo de valor, significou muito. Para mim, mas sobretudo para o Ricardo. Ele nunca disse nada mas sei bem que ele temia a sua desaprovação.
E seja como for, não sei se o José ficou com uma boa impressão de mim, mas fiquei com boa impressão sua. Vi logo que era um homem justo e honesto, afável mas firme, que foi um exemplo para os seus filhos e dei por mim a desejar ter tido um pai assim. Aliás, neste três anos de convivência em que tenho sido acolhido pela vossa família, dou comigo com pena de não ter crescido no meio de uma família assim tão unida.

Por essas e por outras, é que resolvi estar mais em contacto com o meu pai. Bem sei que ele pode ter sido um fraco marido e um pai sofrível, e ter-nos deixado quando eu era ainda um miúdo, mas é o pai que eu tenho e mesmo assim, há pais piores. E também se fosse hoje, muito provavelmente os meus pais nunca se teriam casado, mesmo com um filho em comum. Cada um iria à sua vida, acordando-se apenas as responsabilidades imperativas e tinha-se poupado muita chatice. Mas os tempos eram outros, e com o azar da minha mãe ter ficado logo grávida, não havia então outra alternativa senão casarem, mesmo que era certo para todos que era um enlace destinado a fracassar. Assim que cresci o suficiente para perceber isto tudo, deixei de sentir tanta animosidade para com o meu pai, e a aproximar-me gradualmente dele, ainda que um telefonema todas as semanas e um almoço a cada dois domingos seja o nível de contacto mais que suficiente para ambos, pelo menos por agora.

De certa forma, a família com que cresci foi só a minha mãe e eu, se bem que sempre me dei bem com os meus tios e as minhas primas, mas eles também tinham as suas vidas. Felizmente, a minha mãe nunca dependeu do meu pai, estabeleceu o seu próprio negócio e não se poupou a esforços para criar o filho sozinha. Ela apercebeu-se, ainda antes de eu próprio, de como eu era e foi a pessoa menos espantada do mundo quando me assumi. O meu pai, ao que parece não gostou muito e ainda tem as suas reservas, mas aceitou, quanto mais não seja porque não se sentia no direito de fazer qualquer objecção, já que tinha estado ausente desde os meus oito anos.

Felizmente, não tenho sofrido muito com a discriminação, até que faço por ser discreto quanto a isso. Ser homossexual é apenas uma parte daquilo que eu sou, não é só isso que me define. Uma vez, na rua, três mânfios rodearam-me, exclamando "ó paneleiro", e só escapei de boa porque me lembrei de pegar num canivete que eu tinha no bolso e de o encostar à braguilha do jagunço que ia para me agarrar, que foi remédio santo. Mas a maior discriminação que eu sofri foi por parte de alguém do meu sangue.
A minha mãe diz que a minha avó ficou mais amarga depois da morte do avô, mas não me recordo de uma manifestação de afecto por parte dela. Sei que é horrível dizer isto de uma avó, mas nunca conheci ninguém tão ruim como as cobras. Não merecia os filhos que tinha. Há tanto velhote abandonado por aí, de quem os filhos não querem saber nada, que se tivessem filhos como a minha mãe e o meu tio, dariam graças infinitas a Deus e a todos os anjos e santos. Tanta vez que a minha mãe e o meu tio deixavam tudo para acudir à minha avó à menor aflição, que fizeram mais do que a obrigação deles, e mesmo assim ela só sabia era se queixar e dizer mal de tudo. E sempre que podia, culpava a minha mãe por não saber agarrado o marido e manter o casamento e de ter tido "um filho maricas". Não sei como é que nunca tive coragem de a confrontar e dizer-lhe umas boas verdades. Não o fiz porque, como dizia a minha mãe, por vezes é melhor manter a calma e perceber a pequena dimensão de certas pessoas. Sei que não é nada bonito dizer isto, mas quando ela morreu, o meu pesar não foi muito maior que a minha sensação de alívio.

Apesar de tudo, não me arrependo de tudo quanto eu passei. Não houve nenhuma cabeçada na parede nem pé na argola que não me desse uma lição e me fizesse um bocadinho melhor como pessoa. Ainda tenho um longo caminho a percorrer até ser um modelo de virtudes, mas espero chegar lá perto com o tempo. E ter vivido num quadro familiar tão disforme só me fez apreciar ainda o facto de ser tão bem acolhido no seio da vossa família. Tal como este país, que descobriu a liberdade com o tom vivo do vermelho-cravo a romper o cinzento, vai fazendo o seu caminho entre passos à frente e passos atrás, entre saltos e trambolhões, mas sempre com esperança no futuro, também eu sigo assim. Atravessando pelos azares mesmo quando deixem graves feridas e apreciando as bênçãos quando elas surgem. Vistas bem as coisas, haverá outra forma de viver?

Muitos parabéns e feliz 25 de Abril.

Filipe


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