terça-feira, 10 de abril de 2012

O que os meus olhos viram

Claro que vi no outro dia a reportagem da SIC. Nem acredito que já passaram onze anos. Por um lado, ainda tenho pesadelos com isso. Mas também não é para menos, nunca tive tanto medo na vida. Tínhamos voltado de Fátima, já a poucos quilómetros de casa. Estávamos a cantar e a rezar no autocarro, até tínhamos feito algumas orações pelas vítimas da queda da Ponte de Entre-Os-Rios, que tinha sido umas semanas antes, longe de imaginarmos que estávamos prestes a passar por também por uma tragédia. De repente, o autocarro desgoverna-se, cai numa ribanceira, sou cuspida para fora e catorze vidas são ceifadas no momento seguinte, cada uma de gente que eu bem conhecia. Mas por outro lado, já foi há tanto tempo que às vezes até parece que  só aconteceu nos meus pesadelos.
Na reportagem, revi o Domingos e a Lucília. Coitado do Domingos, ele que tinha um grande amor pela mulher, nunca mais foi o mesmo desde que ela morreu nessa noite, nem mesmo tendo casado de novo. Já a Lucília continua na mesma, sempre com aquele ar triste e sofrido, o que não é de admirar pelo que ela já passou na vida. Mas ela nem se apercebe como é rija e forte. Mesmo depois do desastre e da morte do marido três anos depois, por lá anda. A Lucília é cá das minhas. Enquanto tivermos força nas pernas, cá havemos de andar até não podermos mais.
Mas também disse ela com razão que o desastre atingiu toda a aldeia. Antes, era costume ouvir-se risos e conversas folgazonas quando se caminhava pela aldeia. Depois, mal se ouvia alguma coisa, ficou tudo mais deserto e triste na aldeia. Por essas e por outras, quando o meu marido morreu há três anos, preferi ir viver com a minha irmã e o meu cunhado aqui para esta aldeia.
Eles os dois nem sempre são fáceis de aturar, mas ele há feitios piores, e sempre são companhia. Eu ainda dava em maluca que se passasse o resto dos meus dias sozinha sem ninguém com que falar. Arranjaram-me um canto lá na casa deles para fazer de meu quarto, não é grande coisa mas para mim chega bem. Para compensar, ajudo-os na horta, coso as roupas porque a minha irmã anda cada vez pior da vista e aos domingos, sou eu que cozinho o almoço e o jantar.
Até já os convenci a ir em excursões comigo. A princípio, eles ficaram muito espantados por eu continuar a querer viajar, por causa do que passei com o desastre e pelas minhas amigas que faleceram. Respondi-lhes que se Deus não quis que fosse essa a minha hora, não ia fazer de conta que sim e eu tenho mais é de continuar a viver, bem basta quando essa hora chegar. É como o que a Lucília disse na reportagem: "O que levo de melhor deste mundo foi o que os meus próprios olhos viram."
E eles agora vêm comigo e também gostam e até dizem que enquanto tiverem um mínimo de saúde e dinheiro, também vão querer ir nos passeios. E sempre que vamos a Fátima, por entre todas as almas por quem rezamos, guardo sempre uma oração para a mulher do Domingos e todas as outras a quem Deus chamou para si nessa noite. Se Deus quiser, quando for a minha hora de ir, hei de me encontrar com todas elas.

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