domingo, 8 de abril de 2012

Dona Do Seu Destino

Nelson:

O funeral da minha avó materna foi como deveria ter sido. Uma cerimônia sentida e simples, respeitando a memória de uma senhora que viveu oitenta e quatro anos. Ela foi a única avó que conheci porque a outra já tinha falecido antes de eu nascer. Recordo os lanchinhos que ela me fazia e de assistir novela com ela, as duas embrulhadas no cobertor. Sabia que foi ela que teve a idéia do meu nome?
Fiquei meio espantada quando você me contou que em Portugal, vocês têm uma impressão ruim da Maitê Proença desde que ela fez um vídeo em que fazia troça dos portugueses. Eu não acompanhei a carreira dela, até porque desde criança que nunca mais segui nenhuma novela, mas era uma atriz que sempre me ficou na memória, talvez porque o meu nome vem de um personagem dela, da novela "A Guerra dos Sexos". Assim que soube que ia ter uma filha, a minha mãe estava a fim de me dar um nome anglo-saxônico como Kathleen, Ellen ou Jennifer. Mas a minha avó gostou tanto do personagem da Maitê nessa novela, que sugeriu o nome Juliana e a minha mãe acabou por aceder, nem sei bem como. E ficou Kathleen para meu segundo nome.

Eu estava um pouco apreensivo por ter de encontrar de novo a minha mãe, pela primeira vez em cinco anos, mas felizmente correu bem, não houve nenhuma cena. Percebi que ela estava mesmo abalada com a morte da  sua mãe, sem energia sequer para se fazer de vítima, como era seu costume. O máximo que fez foi dizer dois ou três impropérios do cara de quem ela agora se está divorciando (se não me engano, é o seu terceiro divórcio) e nem disse nada sobre a Debbie. Perguntou só se meu pai estava bem, como é que eu aguentava o frio da Noruega e que tal vão as coisas com o português. Quando lhe mostrei uma foto sua, ela comentou  "pelo menos é bonito, e nem parece português". Ela deve ter te imaginado você de bigode e barrete, que nem os portugueses das piadas.

Ainda assim, a maior parte do tempo, nem sequer nos falámos, limitei a apoiá-la em silêncio durante o velório e o funeral. E dei por mim a sentir que já não guardava ressentimento por ela ter deixado ao meu pai e a mim, quando eu tinha sete anos. Durante muito tempo guardei muito rancor dela por causa disso. Que mãe é que deixa assim de repente uma filha para trás e parte para São Paulo? Por isso, foi muito difícil crescer, passar de menina a mulher, com uma mãe ausente. O meu pai fez o melhor que pôde, estando sempre lá quando eu precisava, mas sabia que algo estava faltando. E no fundo, aquilo que mais me magoava era sentir que se ela se tinha ido embora, é porque ela não gostava de mim, porque eu tinha feito algo errado. Demorei muito tempo a perceber que a culpa não era minha e ainda hoje sinto bem as marcas de toda o rancor e culpa que eu guardei desde menina. Por exemplo, tornei-me muito cuidadosa e arrumada em demasia, com medo que se eu fizesse algo errado, o meu pai também me deixaria, mesmo quando ele me assegurava que não era por eu fazer besteira que ele deixaria de gostar de mim.

Isso também afetou as minhas relações com as amigas e com os rapazes. Quando eu e o meu pai nos mudámos para a Alemanha, eu estava muito ansiosa e pratiquei rigorosamente o meu alemão, para que ninguém me visse como uma estranha forasteira. Queria tanto agradar aos meus colegas e até deixei que alguns deles se aproveitassem disso. Por sorte, acabei  por distinguir rapidamente os amigos de verdade dos amigos da onça. Também morria de medo de ter um relacionamento sério com alguém, e eu era sempre simpática mas distante se um rapaz se interessava. Receava ser obsessiva se namorasse com alguém, sempre pensando que me iriam deixar. Foi preciso um curto mas marcante namoro, durante umas férias em Búzios, por volta dos meus vinte anos, para eu começar a ver as coisas de outra forma. Percebi a força do desejo e que o amor pode ser calmo e sem fazer sofrer. Por vezes, até acho que não fosse esse romance, eu não teria sabido apreciar tão bem estar contigo e deixar você entrar na minha vida.

Olhando para atrás, quase que consigo compreender a minha mãe. Ela foi se convencendo que a vida não teria mais nenhum caminho para ela senão a de ser esposa e mãe, mesmo que não fosse o caminho que ela queria seguir, até porque naquele tempo uma mulher como ela não havia muitas opções. Assim que sentiu outro caminho, quando conheceu outro homem que lhe prometia algo mais em São Paulo, sentiu que tinha de tentar, mesmo que isso significava deixar para trás um marido e uma filha. Anos mais tarde, ela até me confessou que sentia que estava cometendo uma loucura, porque até não tinha nada para se queixar do meu pai, que era um homem bom e honesto e respeitado funcionário federal no Senado em Brasília, e uma filha bem-comportada e fácil trato como eu. "Mas eu tinha que tentar, mesmo que falhasse." Claro que seria melhor que ela o tivesse feito de outra forma, quase sem dizer nada. Também gostaria que ela não tivesse esse jeito vitimista, como se ela não tivesse sido dona do seu destino, ou instável, se casando e descasando.

Mas esse é o jeito dela, e não vale a pena desejar uma mãe diferente ou um passado diferente. Foi preciso desistir dessa idéia, para abraçar um novo futuro. Que de momento passa por chamar casa à fria mas bela cidade de Oslo e namorar um certo português, meio desajeitado e irresistível...

Com muita saudade tua,

Ju

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