segunda-feira, 23 de abril de 2012

Mary Bennet

A maior vantagem de estarmos rodeados por gente que não nos leva a sério é a liberdade para dizermos tudo o que quisermos, mesmo as verdades mais inconvenientes. É tudo o que tenho, poder dizer o que eu penso, dar largas aos meus pensamentos, mesmo sabendo que vão ser condescendentes ou achar que é mais uma parvoíce minha. Falta-me a beleza das minhas quatro irmãs, a delicadeza e elegância de Jane, a argúcia e o talento de Elizabeth ou mesmo o espírito humorado e efervescente de Lydia. Os bons genes dos nossos pais já não eram muitos e ao distribuí-los por cinco filhas, a uma delas tinha de calhar a fava.
A minha mãe acha-me enfadonha, o meu pai acha-me desastrada, Lizzy acha-me ridícula. E se dependesse de Kitty e de Lydia, eu devia enfiar-me numa masmorra qualquer e lá ficar para sempre, para elas não carregarem o fardo de ter uma irmã tão sensaborona. E Jane só não me acha nada porque ela não vê mal em ninguém, a não ser quando o mal se lhe agita à frente do nariz dela, e por vezes nem assim.

Ainda assim, a irmã que mais admiro é Elizabeth. Mais que os seus dotes físicos, invejo-lhe sobretudo o jeito e o génio. Bastar-me-iam apenas essas duas virtudes para que a minha vida me parecesse mais venturosa. Cantar tão bem como ela, tocar com a mesma habilidade no piano, encetar com astúcia qualquer conversa. Porque mais do que insípida, eu lamento sobretudo ser tão grosseira de modos e de prosa. Mas pelo menos, não sou como as parvalhonas das minhas irmãs mais novas, apenas interessadas em frivolidades e namoricos. Falar com Lydia de outras coisas que não das suas diversões é como falar para uma parede e Kitty, embora mais velha que Lydia, é ainda tão infantil que quando não anda a fazer birras, anda sempre ao lado da outra como se fosse uma cadelinha de trela.

Mas nem mesmo Elizabeth é perfeita. Ou não fosse ela muito de ligar demasiado às primeiras impressões e de ser algo selectiva nos seus julgamentos. Por causa disso, ia caindo duas vezes em asneira. Vá lá, com  Mr. Darcy ainda se compreende, porque o homem parecia tão frio, a roçar o antipático, que era fácil ignorar que ele até era um homem bem jeitoso e elegante. O que eu desgostava particularmente nele era algo que é comum aos ricos, que é aquele ar "eu sou rico, logo sou muito melhor que vocês e deviam estar gratos de eu estar a dispensar este tempo em que vos aturo". Por sorte, Elizabeth inspirou Darcy a revelar que por detrás daquela postura orgulhosa e altiva, estavam muitas e nobres qualidades, senão eu via-me obrigada a partilhar a opinião desfavorável da minha mãe que ela tinha dele, mesmo sabendo que há poucos discernimentos mais fracos que o dela.

Mas ao contrário de Lizzy, eu nunca fui com a cara de Wickham. Parecia tal e qual aqueles falsos galãs dos romances, todos cheios de prosa e salamaleques, conquistando facilmente as almas femininas mais influenciáveis. Juntando a isto, um belo palminho de cara e está montado o ardil. Por isso, estive sempre de pé atrás em  relação a ele, mas como a minha opinião nunca vale para nada, nada disse. E se  Elizabeth, que é tão esperta, acreditou no discurso de vítima dele, quanta jovem facilmente impressionável não terá caído na sua teia de mentiras?
E claro está, se Lydia que nunca deu muito uso à cabecinha dela antes, não foi quando Wickham meteu-se com ela que iria pô-la a funcionar. Daí que, quando ela fugiu com ele, nem por um momento deve ter pensado na vergonha que iria fazer a família passar. Simplesmente achou que era tudo uma aventura emocionante, como se vivesse o seu próprio romance de cordel. Não fosse Darcy a remediar o mal feito, e nem sei como seria. Mas como aqueles dois não têm emenda, não lhes prevejo bom destino. Se bem que não se pode dizer que não o merecem. E a culpa também é dos meus pais, a mãe por ter-lhe encorajado as tonteiras e o pai por nunca ter feito nada para lhe corrigir.

Nunca percebi porque é que o meu pai, que até tem um ou dois dedos de testa, nunca se quis impôr no meio deste mulherio, limitando-se a observar e a achar graça a tudo: às crises de nervos da mãe, às minhas tolices, à ingenuidade de Jane, às birras de Kitty, à rebeldia fútil de Lydia.
Pelo menos por agora, está tudo bem. Lydia está longe e ela que se desembarace sozinha. Jane acabou finalmente por casar com Bingley (bom moço, mas um bocado limitado de cabecinha, verdade seja dita) e não tardarão a formar uma bela e encantadora família. Kitty, sem influência de Lydia e controlada por pulsos  mais firmes, vai aos poucos ganhando algum juízo e deixando de ser um caso perdido. Lizzy e Darcy nem parecem os mesmos, de tão apaixonados. Pelos vistos não é só nos romances que os sintomas do amor são muito poderosos e nem sequer os mais fortes e astutos escapam. Com a cabeça e o coração no devido sentido, é uma união que tem tudo para dar certo.

E quanto a mim, a tonta da Mary? Resolvi ser senhora do meu próprio destino. Esta liberdade de dizer o que eu penso é uma das poucas dádivas que me foram concedidas e não irei abdicar dela. Aliás, quero expandi-la e fazer com que me ouçam. Percebi que um dos passos passava por me socializar mais. Já não sou aquela mescla de ratinho de biblioteca com bicho de mato. Também já não me mortifico por ser a menos bonita das cinco irmãs Bennet nem por ter nascido sem gosto ou génio. Eu sou como sou, e mesmo num mundo cheio de orgulho e preconceito, também hei de encontrar o meu lugar.


(NOTA: Mary Bennet é uma personagem de Orgulho e Preconceito de Jane Austen)

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