quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Ensaio experimental

Quando dizem que a luz é a melhor amiga de uma modelo, não é à toa. Quem te vê nos outdoors, banhada pela luz, o teu corpo arqueado em ângulos sinuosos que te traçam uma sensualidade extravasante, a tua longa cabeleira ruiva esvoaçando numa rebeldia calculada, imagina-te uma deusa sensual, mitológica e inacessível.
Se eu não soubesse como te transformas de crisálida a borboleta à velocidade de um clique diante de uma máquina fotográfica, também eu seria mais um de que responderia com um incrédulo "Ah, pois", quando tu dizias que queria ser modelo. Mas até nas fotos que eu te tirava no liceu, ora nas saídas com a malta, ora improvisando ensaios, já tu pousavas para exercitar esse teu inesperado talento, eu conseguia ver essa metamorfose. Sempre que mostrava esses fotos a alguém, a invariável reacção.
Não acredito, é mesmo a Érica? Ela está mesmo bem nestas fotos. Está tão bonita! 
E de facto, custava a crer que aquela miudita caixa-de-óculos, ruiva e branquinha, de semblante fechado, magrinha com uma vagem, quase sem nenhum peito nem rabo pudesse mudar assim tanto sob a luz do flash. Às tantas, é por isso que ainda és pouco reconhecida na rua, porque circulas à vontade no teu modo Clark Kent de saias e só te transformas em super-heroína numa sessão fotográfica ou em cima de uma passerelle.
Sempre gostaste muito da ideia de seres um mistério para todos. Sem dúvida foi por isso que quiseste sempre cultivar a nossa amizade, porque para os outros era de facto uma amizade misteriosa. No liceu, eu era o desportista, o às do voleibol, o puto giro, popular e extrovertido, e tu eras a geek que andava sempre sozinha, que não trocava mais de meia dúzia de palavras com ninguém, sempre sozinha a um canto a ler, ou a observar tudo em redor como quem admira uma pintura abstracta. Ouvi rumores velados de que eu me aproximei de ti para te saltar em cima, movido por uma suposta tara por mosquinhas-mortas, embora a maioria acreditava que era por eu ser um bom rapaz e não querer deixar ninguém de fora e desintegrado dos outros. Se me perguntassem abertamente na altura, eu poderia dizer que era por gostar do facto de seres uma miúda inteligente, pouco dada a futilidades e dramatismos típicos da adolescência e sobretudo, porque eras uma boa ouvinte e sentia que te podia contar tudo, sem que me julgasses ou fizesses troça.
Mas agora sei que além desses motivos, era porque eu gostava de ti, Érica. Tal como agora sei que tu também gostavas de mim. Os teus sinais foram sempre muito subtis, quase imperceptíveis, e era miúdo demais para os detectar, mas agora sei que lá estavam. E lamento que não tenhas sido mais óbvia, devias saber que nessa idade nós, os rapazes, ainda não sabemos captar esses pequenos indícios dos ardis femininos, tem de ser mesmo tudo ali em frente, com desenhos do Pictionary, ou melhor, sinais gigantes de néon a piscar. Provavelmente, diria que sim, aliviado por teres dado o primeiro passo. Sim, Érica, também gosto de ti, quero namorar contigo, que se lixem as piadas da saloiada. 
Contudo, deves ter analisado tudo muito bem, pesado os prós e contras, para concluíres que não valia a pena arriscares o passo em frente. Iria ser esquisito, iria mudar as coisas, criar ciúmes e desconfianças, estragar tudo de bom que demorámos a construir. Sempre foste cartesiana, a analisar e sobreanalisar tudo. Sem dúvida que isso te dá muito jeito na tua carreira actual de manequim, consigo imaginar-te a assimilar como uma esponja as direcções dos fotógrafos e dos produtores, a procurares mentalmente quais as poses ideais diante do cenário com que te deparas e o produto que é preciso vender. Até acredito que foi após muita análise e reflexão que decidiste que a situação ideal para perderes a virgindade foi naquela noite em Albufeira, nas férias da Páscoa, em que te meteste na minha cama com uma caixa de preservativos e debaixo de um edredão experimentámos aquilo que só em lugares distantes das nossas mentes desejávamos viver.
Claro que nunca esqueci essa noite nem o que fizemos nesse novelo de ternura, desejo e embaraço. Se bem que prefiro recordar em particular uma noite chuvosa, umas semanas antes, onde me arrastaste para ver uma peça de teatro qualquer e no caminho de volta, eu puxei-te para debaixo de uma paragem de autocarro e beijei-te. Foi a única vez que te vi completamente desprevenida e adorei isso, embora eu depois tenha dito que fora uma vez sem exemplo.
Os anos passaram, já não somos uns miúdos, mas continuamos amigos. Apesar dos truques de magia dos soutiens que agora usas, tens ainda um peito pequenino, mas nem por isso menos apetecível. Continuas igual a ti própria, algumas das tuas manias extinguiram-se, outras ampliaram-se, mas ainda gosto de estar contigo.  Eu próprio também mantenho algumas manias, adquiri outras, e nem por isso deixaste de apreciar a minha companhia. A Érica manequim é bela e sensual, mas é da outra Érica que eu gosto. Se eu te dissesse que estou apaixonado por ti, como afinal sempre estive, arriscarias esse flash, só para ver no que dá? Podes esmiuçar cientificamente as vantagens e os inconvenientes ou então decidires, por uma vez na vida, fazer algo espontâneo, mas gostava que dissesses que sim. Eu por mim, acho que podemos ficar bem na fotografia, mas mesmo que não, mesmo que se estrague o filme todo, ao menos podes dizer que foi apenas um ensaio experimental. Vou procurar o ângulo onde a luz melhor me incide, diz-me qual é a minha melhor pose. Então, que dizes?

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