segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Preservar o calor

Ricardo:

Já deves saber que eu e a Ju nos encontramos bem de saúde, pois nem sequer estávamos próximos do local da explosão. Mas claro que esta tragédia também nos afectou, afinal de contas, este país é a nossa casa e não há memória de um semelhante murro no estômago colectivo.
Lembras-te de eu dizer amiúde que eu era uma alma nórdica aprisionada num corpo português? Pois bem, foi preciso eu ir viver para a Noruega, para me aperceber que sou portuguesíssimo. Aprecio este povo solícito, bem educado, civilizado. Admiro como assumem a sua responsabilidade, e sabem conjugar bem o trabalho e o lazer. Não perdem tempo nem dinheiro com ninharias nem gostam de fazer alarde daquilo que têm e deixam de ter. Apesar da elevada carga fiscal, os dinheiros são bem aplicadas pois os políticos aqui sabem que estão para servir e não para serem servidos e há uma real preocupação com o bem-estar das populações. Mas a verdade é que por muito que admire os noruegueses e por muitos anos que viva cá, nunca serei senão português. Não consigo adquirir as doses cavalares de paciência que eles têm; exaspera-me que mesmo no pino do Verão rara seja a semana em que não chove; chateia-me estar semanas sem ver o Sol no Inverno e o frio ainda me faz impressão embora seja geralmente um frio seco que faz com que se suporte melhor cinco graus negativos cá do que cinco positivos aí.
No entanto, embora saibam acolher e sejam um povo simpático e cordial, eles possuem uma frieza que acho que ninguém no Sul da Europa terá. Imagina tu que volta e meio dizem-me que acham graça eu ser muito expansivo e irrequieto. Vê lá, logo eu, que sempre fui tão introvertido e sempre me orgulhei de ser tão calmo e ponderado. E com a Juliana, passa-se o mesmo, dizem-lhe "és mesmo brasileira" embora ela esteja longe de ser a típica brasileira que o mundo inteiro idealiza. Mas no meio de tanta escandinava, ela era suficientemente brasileira para me aquecer...
Eu até cheguei a engatar algumas norueguesas. Aparentemente agradavam-lhes os meus olhos e cabelos castanhos, tal como eu apreciava os seus olhos claros e cabelos louros. Uma vez quando disse a uma que tinha uns lindos olhos azuis, ela respondeu que ter olhos azuis é aborrecido, que toda a gente na Noruega tem olhos azuis, que ela gostaria de ter olhos castanhos como eu. Deve ser a velha história da galinha da vizinha. Seja como for, aproveitando o meu aparente exotismo de homem latino e como em termos de engate, o português pode ser pacóvio mas é eficiente, lá fui namoriscando uma ou outra local. Mas teve que vir uma brasileira para me deixar completamente apanhadinho e querer mais que um caso fugaz. Ela não é a típica brasuca boazona mas é encantadora que só ela, como tu bem sabes. A nossa compatibilidade de feitios e gostos, aliado à invulgar situação algures entre sermos peixes fora de água e estar num lar longe do nosso lar, ajudou à nossa cumplicidade. E apesar de tudo, estamos muito felizes por viver aqui.
Por isso, esta tragédia veio-nos relembrar que até nos sítios mais aprazíveis podem surgir os piores monstros. Como aquele que esteve por detrás disto tudo, que fez explodir o prédio do gabinete do primeiro ministro e matou indiscriminadamente tantos jovens em Utoya. Muitos deles, tão noruegueses e caucasianos como ele, embora apregoasse que a sua causa era contra os forasteiros imigrantes, sobretudo muçulmanos. Para uma sociedade onde coabitavam de forma relativamente harmoniosa e pacífica gente de várias nações, raças, culturas e religiões e que se orgulhava disso, foi um duro golpe. Saber que as vozes que se erguiam contra isso poderiam ir aos limites extremos de terror para tal foi um alarmante abrir dos olhos. Lembrou-nos a todos que o terrorismo, tal como todos os males do mundo, pode ter vários rostos.
No entanto, e apesar do duro murro no estômago, existe calma, respeito e ordem. Espero que me engane, mas algo me diz que se o mesmo tivesse acontecido em Portugal, haveria uma histeria colectiva colossal. Mas aqui mesmo os que mais sofreram, recusam o vitimismo. As vozes que se levantam são para reafirmar o orgulho na sociedade multicultural e tolerante. Mais do que nunca, tenho ouvido os nossos amigos e  até desconhecidos a dizerem para não termos medo, que não têm nada contra os imigrantes bem pelo contrário, que só uma quantidade muito residual dos noruegueses é que pensa como aquele doido. Se ele queria com isto lançar uma semente de ódio, só se foi de ódio contra ele e contra aquilo que ele defende.
Por muito rapidamente que ordem e a calma tenham sido restabelecida, sei que a Noruega vai demorar muito tempo a recuperar de todas as mazelas. Foi uma espécie de inocência perdida, um brusco rasgo numa tela de cores, um abrupto risco na harmonia. Só espero que o frio do medo não se junte à frieza cordata dos noruegueses. Mas pelo que eu sei deles, tal não deve acontecer. É que aqui se aplica literalmente a expressão "trabalhar para aquecer" e num clima frio como este, viver é preservar o calor.
Não é à toa que em Portugal, toda a gente adora o Sol. Parece que em Portugal, apesar de tudo, não há nada como o sentir o Sol na cara para sentir um gosto da vida.

O teu mano,
 Nelson 

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