segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Cá vou vivendo

Hoje, que é Dia dos Finados, é que me deu para olhar para trás, pensando nestes meus dois anos sem ti. Por um lado, tanta coisa mudou que às vezes que a tua presença neste mundo foi uma realidade paralela. Por outro lado, ainda tenho dias em que nem consigo crer que já não estás aqui a meu lado. A falta que me fazes, Celeste Maria. Tantos anos com a vida correr certinha, apesar de uns ou outros percalços, como um calmo leito de rio e de repente, tu partiste e fiquei sem norte, sem saber que rumo tomar.
Acabei por continuar a trabalhar, não só porque só fazia sentido meter a reforma antecipada se tu estivesses cá para gozarmos o tempo que nos restasse juntos, com os filhos já a traçarem as suas vidas, mas também porque o trabalho lá nos seguros sempre me ajuda a distrair e a desanuviar a cabeça de tanto zunir de sofrimento. Tal como me ensinaram desde pequeno, por fora mostrava-me forte e estóico, mas em privado, sozinho entre as paredes do quarto que tantos anos partilhámos, tal como todo o resto, sentia-me tão vazio e triste. Segundo o Ricardo, há cinco estádios do luto: da negação à raiva, da negociação à depressão e por fim a aceitação. Mas eu cá acho que passei pelos cinco ao mesmo tempo.

Só que mesmo que a dor e a saudade nunca se apaguem com o tempo, continuamos vivos e a vida, mal ou bem, retoma o curso. E de repente, vi o Nelson a partir para a Noruega, não hesitando em aceitar a oferta de  trabalhar num laboratório em Oslo, e a Mónica a tornar-se hospedeira e saltitar entre o céu e a terra. E de repente, fiquei só com o Ricardo aqui por perto.
Por muito que uns pais se esforcem para gostar dos filhos por igual, creio que é natural que algumas preferências surjam. Eu sempre fui mais próximo do Nelson, porque que me revia mais nele de entre os três. E a Mónica foi sempre a minha pequenina e ela sabia mesmo como deixar-me derretido e embeiçado, foi sempre uma coisa irracional. Lá dizia sempre tu, "Ai, a menina do papá". 
Já o Ricardo foi sempre um mistério para mim, sempre muito quieto e fechado em si mesmo. Mesmo em pequeno, estava sempre quietinho, não fazia birras e parecia contentar-se de observar tudo com aqueles grandes olhos castanhos, semelhantes os teus. Agora percebo que ele saiu a ti, que eras também um mistério para os outros, que também observavas tudo e nada te escapava e nunca dizias mais do que era o essencial. Mas como eu fui dos poucos a quem tu abriste a alma e o coração, sem filtro nem reservas, era fácil para mim esquecer desse teu traço. 

Enquanto bastava olhar para a expressão do Nelson para adivinhar o que se passava com ele e a Mónica sempre foi de dizer o que pensava, o Ricardo parecia por vezes de um mundo à parte, embora se mantivesse atento em tudo a seu redor. 
Ainda assim, quando ele nos contou que gostava de rapazes, já eu sabia há algum tempo. Por mais que ele não fizesse por revelar, havia sinais que não davam para ignorar. Claro que eu fiquei alarmado e só depois de falar contigo, é que pude ter o discernimento para concluir que filho é filho, não mudava em nada o que eu sentia por ele. Qualquer esperança que ainda acalentei que fosse apenas uma fase ou uma confusão juvenil não durou diante das evidências. Mesmo assim, era e é um assunto que sempre me fez espécie. 
Fui criado num tempo em que se acreditava que ser gay era totalmente inaceitável, um pecado, quase um crime até. Que os homossexuais eram todos efeminados e devassos, apesar de durante muito tempo a grande maioria manter habilmente as experiências escondidas debaixo de fachadas de homens respeitáveis e pais de família. E que pai é que consegue imaginar um filho aos beijos e abraços com outro homem sem nenhum desconforto? Por isso é que nunca quis saber de nada da vida amorosa dele para além do que ele dizia e ficava satisfeito por ele preferir falar contigo sobre isso. Limitei-me a aceitar, o que já não é pouco, e agora sei que isso já significou muito para o Ricardo.

Com o Nelson na terra dos vikings e a Mónica entre aeroportos e aviões, vi-me a procurar a maioria do apoio que necessitava no Ricardo e isso tem-nos aproximado mais do que nunca. Eu sabia que ele era psicólogo e que estava a trabalhar em escolas, mas não sabia que ele fez um mestrado sobre o que agora se chama bullying nas escolas. Tu decerto sabias, mas eu não fazia ideia que ele também tinha sido vítima de algumas maldades dos colegas de escola, que faziam troça dele só por ele ser diferente e não alinhar com as matilhas dos outros cachopos. E nem era por ele ser gay, nem sequer sabiam disso, era só por ele ser calado e reservado, e para esses fedelhos, isso já era motivo para ser esquisito e merecer ser gozado. Uma vez até o apanharam à saída da escola e enfiaram-no num caixote do lixo. Segundo o nosso filho, queriam fazê-lo chorar e ele com os nervos pôs-se a rir! Diz que foi remédio santo e não o chatearam mais. Fiquei tão admirado com a coragem dele, mas fiquei triste por nunca me ter apercebido do que ele estava a passar para o poder ajudar. Ele disse-me que entre o Nelson a ser alvo de inveja por causa das boas notas dele e umas raparigas a espalharem rumores maliciosos sobre a Mónica, eu já tinha ralação que chegue. Também descobri que ele pretende criar um grupo de apoio a jovens  que lidam com a sua homossexualidade e com todos os estigmas que daí advêm. Espero que ele consiga levar isso adiante, é uma pena haver tanta gente a sofrer por uma coisa que, vistas bem as coisas, não têm culpa nenhuma de serem assim e que não puderam escolher. Ou como diz o Ricardo: "Se fosse escolha, escolhia-se não ser homossexual e ser como a norma, quanto mais não seja porque era menos chatice."

Agora que finalmente vou conhecendo bem o nosso filho do meio, tenho aberto a minha mente a muita coisa. Ainda assim, como deves imaginar, quando fui para o Algarve com o Ricardo e o namorado dele no Verão passado, ainda foram bastantes os momentos embaraçosos. Nos primeiros dias, à hora das refeições, ou não falávamos à mesa, ou íamos fazendo conversa de circunstância. Até que num jantar, o Filipe, o namorado dele, estava a abrir uma garrafa de vinho e a rolha não havia meio de sair. Quando finalmente a rolha soltou, deixou tombar a garrafa e uma boa quantidade de vinho escorreu para cima do frango assado que tínhamos acabado de trazer. Sai-se então o Filipe com esta:
- Se calhar, em vivo o frango nunca tinha apanhado uma bebedeira. 
Era uma piada um bocadinho seca, mas sabe-se lá como, desatei-me a rir. E até ao final da estadia, não houve mais silêncios embaraçosos. Pela primeira vez em longos meses, sentia-me completamente em família. E nos grandes olhos castanhos do nosso filho, podia ver a sua felicidade em ter o companheiro e o pai lado-a-lado. Parecia que pela primeira vez, o seu silêncio dizia mais que as palavras. Tal como o teu sempre me disse tanto.
Fazes-me tanta falta, Celeste. Mas cá vou vivendo e é tudo o que eu posso fazer.


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