domingo, 5 de fevereiro de 2012

A Três Metros do Céu

Mónica:

Vê só como é a vida. De nós os três, eu fui o primeiro a andar de avião e o único que fez Erasmus. E agora anda o Nelson a fazer a vida dele lá pela Escandinávia, tu a acumular milhas aéreas, e eu é que estou aqui em Portugal e já faz dois anos que não vou ao estrangeiro, todo ocupado entre o trabalho, o Pai e oficializar a união de facto com o Filipe.
Mas não me queixo. O trabalho tem-me ocupado muito tempo e energia, mas este projecto é algo que me faz sentir feliz e realizado. E com vocês fora, fui eu que tive de acompanhar mais o Pai enquanto ele refazia a vida sem a Mãe, e no processo foi como se nos redescobríssemos um ao outro.

Por falar nisso, no outro dia o Pai contou-me como tu estavas tão preocupada quando eu fui fazer o Erasmus na Holanda. Também não era para menos, foi umas semanas depois do 11 de Setembro e nessa altura toda a gente estava cheia de medo de entrar em aviões. Até eu estava um pouco apreensivo, mas a ideia de andar de avião e viver num país estrangeiro pela primeira vez deixava-me muito entusiasmado e durante o voo, não pensei em terrorismos nem nada do género. Mas tu estavas tão preocupada com a hipótese de haver no avião um esbirro qualquer da Al Qaeda pronto a mandar-me pelos ares que quando aterrei em Amesterdão, ainda à espera das malas, foste logo a primeira pessoa a quem liguei e acho que o teu suspiro de alívio deve ter-se ouvido em todo o município. Longe de nós imaginarmos que um dia irias fazer vida de andar de avião.
Tal como longe de mim saber que também eu iria ter um romance de Erasmus, que terminou tão repentinamente quanto começou. Qual caixa de Pandora, o Johann soube como libertar todos os espectros emocionais que eu carregava desde sempre e quando dei por mim, já tinha mergulhado de cabeça.
Sim, eu sempre soube que era homossexual, tal como tu, o Nelson e os pais sempre souberam, mesmo que nunca falássemos disso, qual elefante no meio da sala. Se por um lado, não tinha dúvidas do que eu sentia e sentia a óbvia curiosidade de passar da teoria à prática, por outro sabia que muita gente não aceitaria isso tão bem como a minha família. Se eu já tinha chatices que cheguem dos bullies só por ser diferente da maioria do rebanho escolar, se eu lhes desse mais razões para levar porrada e, como sabes, quem me tira o sossego da minha vida, tira-me tudo. Para não falar dos inevitáveis conflitos interiores: "Porque é que sou assim? Porque é que não sou como os outros? Porque é que dizem que sentir o que eu sinto é errado e nojento? Serei uma pessoa abominável?"
Foi preciso eu estar noutro país para me sentir suficientemente confortável para verbalizar os meus sentimentos e os meus dilemas. Algo que nem sequer fizera convosco, embora já soubesse que vocês iriam apoiar-me, mas quando temos uma semente de medo e dúvida tão enraizada em nós, isso paralisa-nos.

Para além do excelente contributo académico que estudar um semestre na Universidade de Haia me proporcionou, também o simples facto de viver num país diferente e conviver com gente de várias nacionalidades abriu-me os horizontes, dando-me ideias sobre alguns dos rumos que queria tomar na vida. Até mesmo a língua acabou por não ser problema de maior, apesar de não ter retido o pouco que consegui aprender daquele idioma arreganhado, nem sequer o frio em doses a que não estava muito habituado por cá. Acabaram por ser poucos os momentos em que me senti um peixe fora de água.
Imbuído nesta expansão de espírito, arrombei a caixa de Pandora de emoções que mantive fechada a cadeado durante toda a minha vida. Primeiro porque estava num país onde há séculos o pragmatismo prevalecia sobre os dogmas religiosos, e por isso não admira que tenha sido um dos primeiros a entender o quão redutor é restringir as relações afectivas e físicas ao binómio homem/mulher. Depois porque um austríaco de olhos verdes fez-me viver tudo aquilo com que mal me atrevia a sonhar.
Nós sabíamos que era uma loucura, que não era justo nos apaixonarmos quando sabíamos que não iria durar, que não valia a pena criar ilusões de que poderíamos continuar a relação quando cada um voltasse ao seu país. Mas o que havia entre nós era tão forte que tudo o que podíamos fazer era vivê-lo e tentar esticar o pouco tempo que dispúnhamos tanto quanto pudéssemos.
Como é que eu não sabia até então como é tão belo o amor e tão ardente a paixão? Como é alucinante sentir o prazer a explodir nos nossos corpos? Como vicia mais do que qualquer droga, como tudo isto nos deixa tão parvos e tão esclarecidos ao mesmo tempo? Como tudo dói quando chega ao fim?
Na minha última noite em Haia, eu e o Johann fizemos amor pela última vez, num acto que falou mais do que todas as palavras de despedida. Deixei-o adormecido no quarto dele, entrei no meu e estendi-me na cama, pronto a romper em choro. Mas eis senão que oiço alguém a chorar, e não era eu. Era a Kasia, uma polaca, também ela a carpir o fim de um romance Erasmus com um italiano. Fui ter com ela, limpei-lhe as lágrimas e ela abraçou-me. Ficámos ainda algum tempo abraçados em silêncio até ela se recompor e agradecer-e. Senti que ao consolá-la, estava também a consolar a mim próprio. Acabei por não chorar, e assim embarquei  no voo de regresso, com a sensação agridoce de que eu vivera este tempo todo a três metros do céu e que chegara a hora dos meus pés reencontrarem o solo.

Lamentei só terme inscrito no Erasmus por um semestre e não para o ano inteiro, mas era o meu último ano de curso, queria viver a minha última Queima das Fitas, tinha medo que houvesse problemas com a equivalência dos créditos, de perder matéria no curso cá que fosse importante, ou que não me tivesse conseguido adaptar bem a viver tanto tempo na Holanda. Tudo receios infundados. Mas agora não havia nada a fazer e a vida seguiu o seu caminho.
Mesmo assim, as marcas do Johann permaneceram muito tempo. Ele elevou de tal forma a fasquia com o que vivi com ele que nos anos seguintes não me conseguia interessar por ninguém e todos aqueles que se interessavam por mim perdiam redondamente na comparação ao Johann. No máximo dos máximos, muito de vez em quando, se a minha libido prevalecia e a solidão apertava, cedi a umas aventuras de uma noite.
E já quando eu receava que nunca mais iria viver nada parecido, apareceu o Filipe. Então percebi que o fogo do amor tanto pode surgir abruptamente da chama como erguer lentamente das brasas. Mas essa história já tu conheces.

Entretanto, minha querida maninha, também tu já perdeste o medo de voar, já estiveste em mais países que eu, já amaste e sofreste por amor. Haverá de chegar o dia em que vais querer deixar a casa do Pai, que ainda é a tua morada oficial em Portugal, e construir o teu lar. Tal como eu o fiz, semeando os meus projectos aqui no nosso país, à espera de colher os frutos, e escolhendo o Filipe para a pessoa a quem eu quero voltar quando chego a casa. Pode ser que o faças noutro país, como o Nelson. Ou então, que continues a voar pelo céu de Europa, mas fazendo de o coração de alguém a tua casa. Quem sabe se não esse homem-mistério de quem tens sempre vontade de procurar quando estás por cá?

Muito e bons voos para ti
do teu irmão Ricardo.

1 comentário:

andré maia disse...

Perder o medo de voar!...

Às vezes - talvez na maior parte das vezes - não se trata de medo, mas do receio do que possam dizer os que se derem conta de que somos capazes de voar.

...E sentimo-nos quase como seres em vias de extinção, perdidos entre a possibilidade de arriscar uma queda mais ou menos atabalhoada e a evidência de que, lá de cima, podemos escutar o silêncio e chegar perto das estrelas.