sexta-feira, 9 de maio de 2014

Fortes são os Trapos

Tomás

Sei que entre gajos como nós, não se conversam sobre sentimentos e lamechices, dizemos tudo nas entrelinhas. Mas assim como assim, eu já tenho fama de lamechas e sei que tu não levas a mal, por isso deixa-me dizer-te que te admiro imenso. Custa um bocado acreditar que um tipo como tu, que ainda tem ar de rapazola, com a tua atitude discreta que parece quase de mosca morta (mas quem te conhecer de verdade sabe que não é nada assim), tenha uma força imensa. Aquele tipo de força que é quase imperceptível, porque não se impõe, limita-se a surgir nas horas do aperto. Como quando o Pedro teve o AVC à nossa frente e tu mantiveste a calma, tentando-o reanimar e pedindo a nossa ajuda, quando eu estava prestes a correr em círculos feito barata tonta e o Francisco a ponto de cair para o lado. Sim, porque nós sabemos que o Francisco tem a mania que é bom e duro, mas se algo lhe atinge bem no âmago, ele é o mais vulnerável de nós os quatro.
Não sei se essa força que tu tens é algo inato ou foi algo que te foi incrustado para poderes aguentar todas as merdas que te aconteceram. Tu dirás que foi a segunda, mas não sei se é algo que sempre tiveste, apenas não sabias o poder que possuías. Seja como for, quem me dera ser assim. Infelizmente, muita gente continua a acreditar teimosamente que a verdadeira força está na capacidade de intimidar os outros. Mas eu creio que os verdadeiros heróis são aqueles que valorizam mais o respeito daqueles que protegem do que o temor daqueles a quem se insurgem. O Pedro é assim, e quanto mais te conheço, convenço-me que tu também. Mas talvez ainda não tenhas plena consciência disso.

A Beatriz Costa dizia que era uma cara de boneca de loiça num corpo de boneca de trapos. Talvez por isso, ela foi tão histórica tanto na pele da tímida Alice costureirinha que cantava "A Agulha e o Dedal" enquanto suspirava de amores pelo Vasquinho, como na da saloia Gracinda (cuja esperteza de saloia não tinha nada) a chilrear pelo meio da roupa branca. Já eu sou mais como o Vasco Santana, e não apenas porque já fui tão gordo como ele. Ele bem que podia ter sido um boneco de louça concebido pelo Rafael Bordalo Pinheiro, todo sorridente e de bochechas coradas, talvez até dando ideia que nada o perturba. Mas como é de loiça, estava sempre a um passo em falso de cair e quebrar-se em mil cacos. 

Durante muito tempo me senti assim e só a muito custo fui descobrindo a minha própria força. Tanto tempo a desejar que alguém me apoiasse mas só quando descobri que ao apoiar os outros, estava também a apoiar-me a mim, a fortalecer-me é que não olhei mais para trás e fui conquistando estas doces vitórias que me sabem tão bem depois de provar tanta amargura. E sinto-me honrado em agora poder ser o rochedo de alguém, como eu sou para a Sandra, ainda para mais agora que ela anda tão em baixo com problemas lá no trabalho dela. Quando ela me tenta explicar o que se passa não percebo metade das palavras que ela diz, mas faço por ouvi-la e é o que basta para ela. Ou simplesmente tomá-la nos braços e dar-lhe o conforto que eu gostaria que alguém me desse quando eu preciso. E é aí que me apercebo que posso ser um boneco de loiça, mas já não é qualquer gesto brusco que me vai fazer quebrar. 
Mesmo assim, continuo com inveja dos bonecos de trapos como tu, que podem não ficar bonitos na prateleira, mas que podem ser atirados das escadas abaixo que nada lhes acontece e continuam com um sorriso cosido a linha tosca. Fortes são os trapos e espero que por esta altura, a Cláudia também já saiba disso. E já agora, tu também.

Mas isto sou só eu a falar, que sou um Pierrot lamechas de louça.

Miguel
 

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