sábado, 9 de abril de 2011

Cena de caça

Deitámos fora o passado e fechámos a porta ao futuro. Esquecemos as discussões, esqueci o teu feitio insuportável, esqueceste os meus pecados.
Somos dois heroinómanos na posse de uma nova dose, duas bestas animalescas excitadas pelas feromonas. Acreditamos que somos um vício que não podemos curar e já não há escrúpulos nem misericórdia.
Vejo um sorriso macabro nos teus olhos quando ouves o tecido da minha camisa a rasgar-se e os botões a caírem no chão. Meus braços são tentáculos que te invadem e te violam, desejando que tu percas o ténue fio de controlo que te suspende.
Os beijos são garras e ventosas, e tu és a hera a cirandar os muros que eu ergui e que caem a teus pés.
Ouço o teu doce suspiro quando te esmago com o meu peso e os meus pêlos roçam na tua carne macia. Os nossos cheiros de macho e fêmea são uma solução corrosiva pronta a efervescer. As nossas peles são pegajosas e acres.
Entre visões de ti, o meu cérbero projecta fotogramas em alta velocidade. Longas fileiras de candeeiros ao longo de avenidas. Paredes tatuadas de graffitis. Luzes acesas nos andares intermédios de arranha-céus. Pedras a afundarem-se na água. Chamas azuis em bicos de fogão. Semáforos que passam de mãos vermelhas para bonecos verdes. Pedras nas calçadas como puzzles incompletos. Enxames de insectos rasando sobre a relva. Faróis de um carro a aproximarem-se cada vez mais perto. Uma luz branca que ilumina o escuro e cega-me a retina.
Aquele momento em que tudo se ganha e tudo se perde. O grito. O escuro.
Nos corpos onde havia energia, vida, desejo, fome, agora só há o mais completo silêncio. Ficamos imóveis, desprovidos de água e de consciência. Até que venha de novo a lucidez e recordarmos os motivos que nos levaram a nos afastarmos um do outro. O maior deles é que sempre que cedemos à tentação do reencontro, o que fazemos já não é aquela cerimónia de amor. É apenas uma cena de caça filmada em alta definição.

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