quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Peça do Tetris

Meu caro S.:

Houve um Natal em que um tio resolveu dar a cada um de nós, a mim, ao Nelson e ao Ricardo, um daqueles jogos de Tetris, que na altura chamavam-se Brick Mania. O Nelson foi o mais viciado, andou quase o resto do Inverno viciado naquilo, quase só parava para comer, dormir e estudar, mas eu e o Ricardo também dispensámos umas boas horas naquilo. Certo dia, a minha mãe, curiosa por saber que raio de traquitana era aquela que nos deixava todos vidrados, pediu-me que lhe ensinasse como funcionava aquilo. E não é que nem dez minutos depois, ela já estava uma mestra naquilo e a fazer melhores pontuações que eu?
Mas também não era de estranhar já que nunca vi ninguém tão organizado como ela. Como professora, já estava mais que habituada a formar ordem no meio do caos e a mesma doutrina se aplicava em casa com três filhos e um marido que se lavasse a loiça e limpasse o pó de vez em quando já era muito.
Por exemplo, nas nossas viagens em família quando íamos de férias para o Algarve ou passar alguns dias a casa da Avó Eugénia, cada um tinha a sua lista detalhada de toda a roupa que tinha de levar na mala e tínhamos de restringir a nossa tralha pessoal. Eu e os meus irmãos protestávamos ao princípio mas no fim, nenhum levava assim muita coisa: bastava uns livros para o Nelson, umas cassetes para o Ricardo ouvir no walkman e um caderno e umas canetas para eu escrevinhar coisas e mais não era preciso. Mas mesmo assim,   era sempre um desafio enfiar todas as malas no porta-bagagens do carro, que nunca parecia suficientemente grande. No fundo, as malas eram peças de Tetris e minha mãe sabia sempre como encaixar. Não admira que ela também se tornasse uma expert desse jogo vindo da Rússia.
Com o tempo aprendi a ser tão organizada como ela, mas demorei algum tempo. Creio que comecei a ser boa a arrumar os pertences quando aprendi a arrumar bem as coisas do meu coração. Animada pela euforia insensata de adolescente e recém-adulta, julgava que se podia medir o amor numa média aritmética de altos e baixos, e embarcava sem hesitar nas voltas da montanha-russa. Onde cada momento de prazer era um fogo de artifício e cada momento de desgosto um drama lacrimejante. Até que surgiu uma definitiva paixão de caixão à cova que perdi por causa dos meus excessos. Fez parte do meu crescimento saber que mesmo no amor e na paixão, também é preciso haver conta, peso e medida e que tudo o que é demais, enjoa e aborrece. Fiquei muito decepcionada por saber que amor, por si só, não era suficiente para fazer as coisas funcionarem.
Foi uma lição dura que eu aprendi, mas além de outros benefícios, fez com que eu fosse muito mais organizada no dia-a-dia. O que se tornou muito útil quando segui esta profissão, onde convém levar todos os pertences num pequeno trolley. Das peças básicas da roupa (como um simples vestido preto que nunca me compromete) ao frasquinho onde aplico as recargas de perfume, dos sapatos rasos que dão tréguas aos saltos altos do ofício ao tubo da pasta de dentes convenientemente enrolado à medida que se vai espremendo.
Ainda assim, eu não sou eu mesma se não viver intensamente e continuo atreita a paixões, só que agora sei medir melhor as coisas, as causas e as consequências. Por isso, pode ser que penses que eu estou a ser fria, ou que o que temos não é muito sério, mas a verdade é que ainda não decidi onde te arrumar no meu coração. A vida tem destas coisas e bastou um simples cruzar de olhares no aeroporto para que entrasses na minha vida e me baralhasses os itens emocionais. Mas ainda bem que o fizeste, não te quereria de outra forma. Porque dás-me sempre vontade de regressar para ti. Por agora, quero que tudo fique assim como está. Logo se vê onde iremos parar. Talvez sejas como aquela peça do Tetris que se infiltra no meio dos blocos mal arrumados que foram impossíveis de encaixar e que preenche os espaços deixados por completar. Para que quando caírem mais peças, venham mais pontos bónus.  

Um beijo,

M. 

3 comentários:

Anónimo disse...

Só uma questão. Se te chamas Paulo e dizes ser do sexo masculino, porquê que depois escreves no feminino?

Paulo disse...

Porque neste caso, estou a escrever do ponto de vista de uma personagem feminina. Tão simples como isto. Regra geral, costumo escrever os meus textos assumindo o ponto de vista de uma personagem que eu invento, se bem que existam alguns textos que são mesmo do meu próprio ponto de vista.

Seja como for, espero que gostes do que eu escrevo. ;)

Filipa Gouveia disse...

Seja do ponto de vista feminino, masculino, ou do ponto de vista de uma personagem inventada, o que escreves é verdadeiramente excelente. Continuação de um bom trabalho :)

http://nospelomundo1.blogspot.com