segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sopro de Vida

Miguel

Muito me alegro que essa tua resolução de não te negares à comida menos saudável caso te apeteça não te tenha impedido de continuares a deixar de lado do ginásio. Eu sei que não vais admitir nem morto, mas estou em crer que já não passas sem as sessões de tortura do Marcelo, o "nazi de Pernambuco" como tu tão afectuosamente lhe chamas, no ginásio e que o vício do exercício já há algum tempo se sobrepõe ao teu vício da comida. Ouso mesmo afirmar que o apelo que a comida exerce sobre ti já é bem menos irresistível e até já te causa alguma náusea a ideia de comeres, por exemplo, um prato cheio de molotofe. E se me permites ainda mais um atrevimento, acredito que essa tal de Sandra não é estranha a essa tua determinação em continuares a atacar o ginásio. Não vejo a hora de me juntar a vocês mas tenho que ir com calma pois só há duas semanas é que saí do hospital após o AVC, que felizmente não me deixou sequelas, e só anteontem é que fui trabalhar e só para fazer trabalho de escritório. Felizmente que a Vera, o João e o Tomás têm dado muito boa conta do recado na clínica. Por muita impaciência que eu sinta em voltar a minha vida de sempre, não me esqueço do que acabei de passar, de que eu cheguei a estar mais para o lado de lá do que o de cá e preciso de todo o repouso que puder.

Mas em relação ao que me perguntaste no outro dia. O AVC deixou-me com menos medo da morte? Sim e não. A morte continua-me a assustar imenso, até porque não me recordo de ter experimentado aquilo que foi alegadamente descrito por quem passou pelas experiências de quase-morte: túneis de luz, visões do entes queridos falecidos, fugas para fora do corpo onde uma pessoa assiste a tudo como se estivesse a flutuar. Quando recuperei a consciência foi como se tivesse acordado de um longo e profundo sono, sem interferência de consciência ou do subconsciente. E por isso, continuo a temer a morte porque temo que depois da vida, não exista Céu, Inferno, reencarnação, ou simplesmente algo mais uma eterna escuridão. Também receio a morte porque eu quero ser pai que a minha filha precisa, quero vê-la crescer, tornar-se mulher e acompanhá-la a par e passo na sua vida. Se eu próprio não consigo imaginar a minha vida sem os meus pais e se custou tanto ao Tomás perder o pai aos 22 anos, o que menos queria é que a Joana ficasse privada do pai tão cedo. Ou que os seus três anos de vida não lhe permitissem guardar uma memória nítida de mim.
Por outro lado, após as dores que senti antes de perder a consciência, a única sensação que me lembro de sentir foi a de uma estranha calma a sobrepor-se a todos os meus pensamentos, sobretudo os mais aflitivos. Se essa mesma calma for a última sensação que sentirmos quando chegar o nosso instante final, não é uma má maneira de deixar este mundo. Contudo, espero que esse momento ainda esta longe de chegar a mim ou a qualquer um daqueles que amo.

O facto também ter sido pai também me ajuda a recear menos a morte, ao menos sei que deixarei aqui algo que faz parte de mim, feito da minha matéria. Nem sei como é que a Marta me convenceu, quando há quase quatro anos foi atacada pelo relógio biológico e quis ter um filho à força toda. Como ela na altura não tinha com quem, virou-se para mim por eu ser um dos poucos ex que ficaram amigos dela e porque, segundo a Marta, ser aquele providenciaria os melhores genes. Nunca na vida pensei ter um filho com alguém com quem não tivesse junto, mas não me arrependo de ter aceitado o desafio da Marta. Criar a Joana a meias com ela tem tido a sua dose de trabalhos e de chatices, mas tem valido a pena.  Temos ambos feito o melhor que pudemos para lhe refrear as birras e os ânimos exaltados. Claro que tendo ela três anos, não dá para fazermos milagres, mas até que ela não nos dá mais água pela barba do que seria de esperar. E não é por a Joana não ter os pais juntos que tem sido menos amada e cuidada. Até porque, por ela, tenho sempre uma reserva inesgotável de amor. Um amor impossível de explicar e que só poderás entender quando fores pai. 

Tal como é tão difícil de explicar como é acordar da escuridão causada pelo AVC, voltar a abrir os olhos e respirar. Até as dores que sentia eram um novo sopro de vida. Depois de passar por isto tudo, tenho intenção de reduzir as correrias da minha vida ao mínimo possível. A vida é só esta, cada momento é precioso e no fim, o que interessa não é aquilo que alcançámos, mas aquilo que sentimos. Só espero que seja permitido continuar a sentir mais no que me resta da vida. Sobretudo o amor da Joana, da minha família, dos meus amigos e, com um pouco de sorte, de alguém que decida que a sua vida será melhor vivida comigo ao seu lado.

Pedro  




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