segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Animal

Diante do espelho da casa de banho, ela retoca a maquilhagem. O sorriso malicioso que lhe devolve o reflexo evoca as memórias da noite passada, de sexo tórrido e espantoso, porque contendo a certeza de ter sido uma noite irrepetível. Em boa hora que a sua amiga Flore a convenceu a irem passar uma semana a Portugal, na belíssima Costa do Estoril. Como sabia bem trocar o Outono chuvoso e lúgubre da sua cidade do Norte de França por um sol português ainda luminoso e quente apesar de já ser Outubro. E sobretudo, deixar de carpir o fim da relação com Adrien, que tanto teve de abrupto como de decepcionante, com um travo ainda amargo após cinco meses. Mas nem nos seus melhores sonhos imaginaria que aquela semana teria como bónus um caso de uma noite com aquele grego atraente e sensual até dizer chega. Decidindo que ele seria perfeito para acalmar as suas feridas abertas deixadas pela desilusão com Adrien e - tinha que o admitir - saciar as saudades de ser possuída por alguém, chamou a si os seus poderes de sedução e o seu charme de francesa. Verificou alegremente que estes surtiam efeitos no belo grego e teve que se controlar para não saltitar de impaciência quando ele a convidou para irem para o quarto dele. Ela teria preferido que as coisas tivessem decorrido de forma rápida e despojada. Que aquele homem de ar imensamente viril e quase perigoso a dominasse e a usasse com impaciência e crueza animalesca. No entanto, ele foi inesperadamente terno, tão delicado ao tocá-la e tão paciente a possuí-la. Por um lado, o prazer foi maior assim mas por outro tornava a situação mais complicada. Porque lhe dava a vontade de mais, de saber mais sobre ele além do pouco que lhe dissera - que se chamava Apostolos ou Tolis, que era de Salónica, que tinha 31 anos, que estava de passagem por Portugal e que ia para o Brasil no dia seguinte. Sobretudo de o querer mais...Mas por muito que quisesse, o melhor é deixar as coisas como estavam e de o guardar numa doce recordação. 
Ela sai da casa de banho, pega na mala deixada ao pé do mini-bar e lança-lhe um último olhar enquanto ele dorme. Sim é melhor sair, antes de complicar tudo. Antes de sair do quarto, sussurra-lhe "obrigado" em três línguas. Thank you, Tolis. Merci. Efharisto.

Assim que ela sai do quarto, ele senta-se na cama. Foi melhor assim,  fingindo que dormia enquanto ela se recompunha para ir embora, sem despedidas, sem mais conversas. Apenas uma bonita francesinha que ele pernoitou. Certamente que ela não se chamava Marie e se escondeu por detrás desse comum nome francês, tal como ele se escondeu por detrás do nome do seu irmão mais velho, aniquilado pela droga há três anos. Gostava de lhe poder dito isso, e muito mais sobre ele. Mas a vida dele não o permite. Desde que há dois anos foi admitido naquela empresa de segurança privada que actua nos lugares mais perigosos e mais exclusivos do mundo, ele quase que nem se pode dar ao luxo de ser humano. Apenas uma sombra a velar por alguém, um animal pronto a reagir a qualquer sobressalto. O gosto de exercer a profissão, o seu empenho por excelência em tudo aquilo que se metia e especialmente a considerável compensação financeira que lhe permitia que a sua família fosse relativamente poupada ao calvário económico que assola o povo grego eram as suas motivações nos momentos mais árduos. Mas a sua última missão no Iraque tinha sido particularmente difícil e ele tinha acusado o cansaço de se mover constantemente como um cão de guarda, esforçando-se para trancar as emoções para que estas não o traíssem. Não lhe podia ter agradado mais saber que a sua próxima missão seria de escoltar um figurão qualquer do COI durante uma visita ao Rio de Janeiro, para ver o avanço das obras dos próximos Jogos Olímpicos. Aproveitou para passar três dias em Portugal para descansar antes de seguir para o Brasil e renovar energias para estar à altura do que lhe era competido. Nunca teria imaginado que parte dessa descontracção envolvia uma cena de sedução mútua com Marie, mas a oportunidade que ela lhe estendera era tentadora demais para recusar. Apesar da sua atitude atiradiça, pressentiu-lhe algumas dúvidas na auto-estima, a necessidade de confirmar que ela era bonita e desejável. Também reparou que ela andava em busca de uma satisfação sem entrega. Mas isso não lhe concedeu. Pelo menos naquela noite, ele não seria um animal nem um objecto funcional. Ele seria um homem, um amante. E reclamou que a rendição dela fosse igual à sua. O que resultou num profundo êxtase que teve o inconveniente de o deixar a querer mais. Mas isso era um luxo que ele não podia ter. 
Na casa de banho, enquanto lavava a cara, o espelho devolvia-lhe o rosto de um homem reconfortado, apaziguado. Onde o animal cedeu o seu lugar ao ser humano. Ao menos isso. Thank you, Marie. Merci. Efharisto.          
       
  

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